O problema dos dados.

Hoje, devido às tecnologias de Big Data e Inteligência Artificial, tudo o que fazemos é registado. Com base nos dados recolhidos, através dos nossos telemóveis e milhares de outros dispositivos, vários governos e empresas sabem, não apenas onde estamos, com quem estamos, como têm acesso à nossas câmara, ao nosso microfone, gravam as nossas conversas, likes, sites que visitamos, mensagens que enviamos, e todas as informações pessoais que possa imaginar, desde doenças pesquisadas, que medicamentos ou objetos compramos, a como o que vemos (sim, é possível saber se nos anúncios ou nos vídeos do Youtube olha primeiro para o rapaz ou para a rapariga), até como nos sentimos. Toda a informação é armazenada em enormes bases de dados e, recorrendo a algoritmos, criam perfis de indivíduos com pouca ou nenhuma intervenção humana. Imagine um puzzle virtual, onde vão encaixando as peças das informações que recolhem sobre si, e de todos. Desengane-se se pensa que está a salvo caso não tenha smartphone ou conta nas redes sociais. Quem está ao seu lado tem, e a câmara e o microfone deles estão ligados.

Cada indivíduo tem o seu duplo datificado, utilizado para o persuadir a comprar produtos, votar em partidos, ou para fins políticos cada vez mais inquietantes. Esse duplo não inclui apenas informações práticas sobre si, também sabe o que sente e, com base nos seus comportamentos passados, consegue prever o que fará no futuro. Basta repetir a mesma ação algumas vezes para que o algoritmo aprenda com o seu comportamento. Mais, estes perfis têm uma memória ininterrupta, já que, ao contrário da memória humana, a deles nunca falha. Tudo fica registado, para sempre: se teve algum problema com a polícia, negativa no secundário, acidentes de carro, ou todas as vezes que não conseguiu pagar uma dívida. E tanto as seguradoras, como o banco que lhe dará acesso ao crédito à habitação, ou a sua empresa de recrutamento, poderão ter acesso a estas informações.

Os maiores ditadores da história teriam sido os primeiros a abrir a caixa tecnológica de Pandora. No tempo da ditadura, seria impossível colocar um agente da PIDE a vigiar cada cidadão, 24 horas por dia, 7 dias por semana. Mesmo existindo essa possibilidade, não havia tecnologia para processar toda a informação recolhida. Seriam 10 milhões de relatórios por dia para analisar onde cada cidadão foi, com quem esteve, as suas ações, e decidir o que fazer com essa informação. Agora, imagine que um agente da PIDE tinha acesso a todos os seus dados em tempo real. Por muito que dissesse que não era contra o regime, ele saberia, pelas suas expressões faciais ou pelo seu batimento cardíaco (dados recolhidos pelo seu relógio inteligente ou pulseira fit) que estava enraivecido no momento em que dizia aquilo. Ou seja, não só é possível ter acesso a todos os seus movimentos – onde está, com quem está, o que está a fazer e a dizer – como ao que acontece no seu corpo e na sua mente. Já não precisamos de seres humanos, nem para vigiar, nem para ler e analisar a informação recolhida. Os algoritmos de Big Data e a inteligência artificial fazem-no em segundos.

Isto não é ficção científica, nem é o futuro. As experiências para controlar grandes populações utilizando este novo tipo de tecnologia já estão a ser feitas, não apenas na China, como em vários territórios ocupados, que funcionam como laboratórios de experiências de tecnologias de vigilância para controlar milhões de pessoas contra a vontade delas.

Neste momento, além de não existir um debate público sério sobre esta questão, a maioria dos portugueses não tem consciência da quantidade de informação que está a ser recolhida a seu respeito, nem das consequências que a monotorização digital está a ter e terá na sua vida. E o problema não é apenas português, mas transversal a todos os cidadãos do mundo. Por exemplo, se a Alemanha ou a China tiver acesso a todas as informações pessoais dos cidadãos portugueses, dos políticos portugueses, e dos membros do exército português, a partir desse momento, Portugal deixará de ser um país independente.

É por este e outros motivos que protegermos os nossos dados das empresas, dos governos estrangeiros, e do nosso próprio governo, é uma das questões políticas mais importantes da atualidade e a existência de um debate público sobre esta questão é uma necessidade urgente. Tem-se falado muito em privacidade, mas o discurso da privacidade é uma falácia que esconde um problema mais premente: a discussão sobre a partilha dos dados. Porque a questão é simples: quem tiver os dados, terá o poder. Poder-se-á dizer que a propriedade dos dados é um roubo; poderá considerar que os dados deverão ser propriedade do Estado, eleito democraticamente, que irá distribuí-los de acordo com o interesse público; poderá alegar que os dados são de quem os recolhe, sejam entidades públicas ou privadas; ou que os sindicatos deverão começar a organizar-se para defenderem a utilização abusiva dos dados dos seus membros. Negar e proibir estas tecnologias poderia ser um caminho tentador, mas é o mais difícil, e provavelmente inglório. O caminho é muito mais o da aprendizagem, do que a negação. Dou-lhe outro exemplo: da mesma forma que uma empresa ou um partido podem criar um algoritmo para nos vigiar ou manipular através dos dispositivos digitais, também podemos criar algoritmos que vigiem e nos protejam das manipulações de empresas e partidos. Quando nos mostrassem uma notícia falsa para nos convencer a votar, ou um anúncio que explorasse os nossos preconceitos para nos persuadir a comprar, o nosso algoritmo bloquearia o anúncio ou avisar-nos-ia que era falso ou potencialmente manipulador. Neste momento, os engenheiros de Big Data trabalham sobretudo nas grandes corporações. Precisamos deles também do lado dos cidadãos.

Da mesma forma, tal como existe um sistema de fiscalização das contas públicas e privadas, também tem de haver auditorias aos algoritmos, muitas vezes responsáveis pelas discriminações mais bizarras. E tantas outras questões que devemos levantar e resolver. Com estas tecnologias, é possível criar o maior governo autoritário da história da humanidade. Vivermos como peixes vigiados e controlados dentro de um Aquário. Mas o fim ainda não está decidido. Dependerá do nosso conhecimento, debate público, e, sobretudo, das nossas ações.

NSA.

Rudy, I spy.