Biografia.
Ontem, passei a noite a ler os diários do Kafka. Queixa-se da necessidade de manter o trabalho no escritório para “ganhar o pão” e da falta de tempo para escrever. Vive em exaustão por manter uma vida dupla, a de agente na companhia de seguros e a de escritor. Pergunta-se constantemente pelas vantagens e desvantagens do celibato e do casamento e de que forma isso influenciaria a sua escrita. Há quem diga, pelas suas cartas, que era torturado pelo desejo sexual. Fala do pai, da relação sinuosa que tinha com ele, e das censuras que lhe fazia por não “se preocupar com a fábrica” da família. Sonha com o momento em que se livraria do escritório e poderia finalmente dedicar-se a escrever. “Não consigo prever uma mudança mais grandiosa do que esta, já de si tão terrivelmente improvável.” Deita-se cedo para escrever de manhã e vai já exausto para o trabalho. Nos dias em que não escreve, sente que o trabalho corre melhor, mas nada daquilo lhe faz sentido. Não lhe doía o corpo mas a alma, digo eu. Tem momentos em que pensa : “não teria a capacidade de aproveitar todo o tempo para a literatura”, para logo afirmar: “todos os dias deveria ser-me apontada ao menos uma linha, como se aponta os telescópios aos cometas”. A mim, também. Ou uma linha por semana, um livro de oito em oito anos, como o Cossery, que conseguiu livrar-se de “tudo isso que desgraçadamente dá felicidade aos imbecis”, e viver, “sempre feliz”, com quase nada.