Zettabytes.

The Modern Lovers, Modern World.

So share the modern world with me
'Cause I'm in love with the U.S.A. now
I'm in love with the modern world now

A maior das amizades.

Sampé
Como não passamos todos, nós os vivos, de mortos que ainda não entraram em funções, todas essas delicadezas, todos esses cumprimentos no vestíbulo a que chamamos deferência, gratidão, dedicação e a que misturamos tantas mentiras, são estéreis e cansativas. Além disso, — desde as primeiras relações de simpatia, de admiração, de reconhecimento, as primeiras palavras que escrevemos, tecem à nossa volta os primeiros fios de uma teia de hábitos, de uma verdadeira maneira de ser, da qual já não conseguimos desembaraçar-nos nas amizades seguintes; sem contar que durante esse tempo as palavras excessivas que pronunciámos ficam como letras de câmbio que temos que pagar, ou que pagaremos mais caro ainda toda a nossa vida com os remorsos de as termos deixado protestar.

Na leitura, a amizade é subitamente reduzida à sua primeira pureza. Com os livros, não há amabilidade. Estes amigos, se passarmos o serão com eles, é porque realmente temos vontade disso. A eles, pelo menos, muitas vezes só os deixamos a contragosto. E quando os deixamos, não temos nenhum desse pensamentos que estragam a amizade: — Que terão eles pensado de nós? — Não tivemos falta de tacto? — Teremos agradado? — nem o medo de sermos esquecidos por um deles. Todas estas agitações da amizade expiram no limiar dessa amizade pura e calma que é a leitura. Também não há deferência; só rimos com o que diz Molière na exacta medida em que lhe achamos graça; quando ele nos aborrece, não temos medo de mostrar um ar aborrecido, e quando estamos decididamente fartos de estar com ele, pomo-lo no seu lugar tão bruscamente como se ele não tivesse nem génio nem celebridade. A atmosfera desta pura amizade é o silêncio, mais do que a palavra. Porque nós falamos para os outros, mas calamo-nos para connosco mesmos.

Proust, in O prazer da leitura, prefácio escrito para a tradução de “Sésamo e Lírios” de John Ruskin.

Escudos humanos.

Olha que ideia fantabulástica tiveram agora: avaliar o desempenho dos trabalhadores no fim de cada telefonema (telecomunicações), visita (supermercados), prestação de serviços públicos (Centro de Emprego) ou privados (Uber). Dizem para escolhermos as opções entre zero e três, em que zero é nada satisfeito e três muito satisfeito, por exemplo. No meio há-de estar o mais ou menos satisfeito. Ou pedem-nos para seleccionarmos umas caras de uns bonecos, smiles, nas máquinas de pagamento, após a prestação do serviço. Se tivermos gostado do atendimento, seleccionamos as caras sorridentes. Se quisermos demonstrar a nossa insatisfação, clicamos nas caras muito tristes.

Isto é muito engraçado e até andam para aí umas pessoas muito contentes e a sentirem-se muito poderosas ou por poderem sancionar outras - Vê-lá-se-te-portas-bem-ou-dou-te-má-avaliação-e-levas-tau-tau-do-chefe – ou por impedirem os trabalhadores de boicotarem este sistema – Olha-que-eu-sou-muito-esperto-e-já-vi-que-andas-a-clicar-nos-bonecos-super-sorridentes-quando-as-pessoas-se-esquecem-de-te-avaliar. São todos muito espertos. Só ainda não perceberam qual é o objectivo desta geringonça.

Sempre que clicamos no boneco triste ou no boneco sorridente, estamos a avaliar o trabalhador e não a empresa. Assim, culpa-se o trabalhador pelo mau serviço e não a empresa que lhes paga mal, que tem más condições de trabalho, de venda, maus produtos, estruturas deficientes. As decisões são tomadas pelas chefias mas a avaliação e as sanções dirigem-se sempre ao trabalhador. Para além de pô-los a competir entre si, em benefício do empregador. Imagine-se que a empresa decide aumentar os preços. Como não é possível avaliar a empresa, apenas o trabalhador, quem acham que vai levar com o cartão vermelho?

E quando forem vocês? Vão fazer sorrisinhos de plástico, mesmo quando queriam arder com tudo, incluindo chefes e clientes, porque têm que pagar as contas, não é? E que tal deixarem de ser palermas e permitirem que os trabalhadores tenham só bonecos sorridentes, para, desta forma, impedirem os chefes de os culparem das decisões que só estes tomam?

Ou isso ou ponham-se a vigiar e a penalizar uns aos outros, enquanto nos usam como escudos humanos.