Agora, nem eu vendo nem tu compras maçãs a um preço justo.

Houve um tempo em que as maçãs nasciam das árvores sem intervenção humana. Os ciclos naturais das águas, das terras, dos ventos e do sol reuniam tudo o que era preciso para que as maçãs brotassem saudáveis. Depois, começou-se a cultivar macieiras. O agricultor tirava sementes de uma maçã e punha-as na terra. Para continuar a ter cada vez mais maçãs, começou a tratar as árvores. Primeiro, podava-as e fazia outras coisas que as ajudavam a crescer. Mas, como esse procedimento não garantia que ele tivesse todas as maçãs que queria, começou a comprar uns produtos feitos em laboratório, que se põem nas macieiras para as maçãs crescerem muito rápido. Também experimentou uns pós para matar ervas e os bichos que costumavam comer algumas maçãs. Mas o agricultor queria ainda mais maçãs, maiores e mais baratas, por isso, em vez de usar as sementes da macieira, passou a comprá-las a empresas que as fabricam em laboratórios, que são modificadas geneticamente para crescerem rapidamente, sem a natureza a atrapalhar. São todas iguais e grandes. Há quem diga que essas coisas e sementes que põem na terra e nas macieiras contaminam o ambiente, provocam cancro e outras doenças muito complicadas, mas não é por isso que estou a contar esta história.

Nesse tempo, antes dos pós e das sementes criadas em laboratório, apanhava as maçãs das árvores, ou comprava-as ao agricultor, e comia-as. Ou não pagava nada por elas, eram uma espécie de oferta da natureza, ou pagava, vamos apenas exemplificar, três cêntimos por cada maçã, ao agricultor. Ele argumentava que eu lhe deveria pagar porque tinha tido o trabalho de as cultivar, proteger e apanhar. Primeiro, não concordei. Afinal, eu tinha-as de graça, podia apanhá-las, e ele agora dizia que as árvores eram dele. Mas depois entramos em consenso. Ele apanhava-me as maçãs e eu pescava, ainda que sempre me tenha recusado a domesticar os peixes, como ele fez com as macieiras. “Se não tens maçãs para colher, podes sempre colher laranjas ou pêras e, em cada época, vendes o que a natureza te oferece sem esforço. Não percebo porque queres vender só maçãs.” Começou-me a falar de um tal efeito de escala, mas ignorei-o. Era um bocado ganancioso, por isso devia ter qualquer coisa a ver com isso. Eu sempre preferi dormir a sesta a dominar o mundo, por isso, especializei-me nela e na arte de pescar no mar.

Um dia, cheguei a casa do agricultor, chamei por ele, e não obtive reposta. À porta, tinha uma folha A4, com uma morada, que dizia: “Para comprar as minhas maçãs, dirija-se ao meu distribuidor”. Que chatice, agora tinha que andar não sei quantos quilómetros para comprar as maçãs. Tanto as sardinhas como as maçãs iam ficar uma porcaria com o calor. Mas como só havia aquelas macieiras na terra (o agricultor apropriou-se de todas), lá tive que ir ao distribuidor. Finalmente, chego ao destino e, para meu espanto, vejo milhares de maçãs de todas as cores e feitios, cartazes gigantes e uns anúncios a piscar cores ácidas que diziam que aquelas maçãs eram as melhores do mundo. Tudo aquilo para vender umas maçãs? Quando tive de pagar sete cêntimos por cada maçã, percebi. Três cêntimos eram para o agricultor e quatro cêntimos para construir o parque de diversões das maçãs.

Mas nisso enganei-me. Quando encontrei o agricultor, uma vez, na praia, disse-me que agora só ganha um cêntimo por cada maçã, e que se não vendesse àquele preço, o distribuidor não lhas comprava. “Porque não voltas a vendê-las tu?”, perguntei-lhe. “Sabes, agora ninguém compra maçãs ao agricultor. É sempre ao distribuidor. Ele faz muita publicidade e convence as pessoas que as maçãs que ele vende são as melhores e as mais baratas. Não teria clientes. Ao menos, assim, garanto algum. E, sabes, tenho de as deixar lá e só recebo o dinheiro quando forem vendidas, o que significa que ele recebe o dinheiro das maçãs primeiro do que eu, e aplica-o no banco até mas pagar. Além de ganhar dinheiro com a venda das minhas maçãs, também ganha juros do meu dinheiro. E diz que aquilo tudo é para pagar o trabalho de as pôr nas prateleiras e de as promover. Que tristeza. Agora, nem eu posso vender nem tu podes comprar maçãs a um preço justo”. “É verdade”, respondi. “Queres que te ensine a pescar?”

Humanismo.

Sempre que há uma catástrofe humana, as redes sociais impregnam-se de frases muito belas. No outro dia, apareceu-me uma, no perfil falso criado para não perder a oportunidade de ler estas coisas, que me afectou profundamente: "Vejo humanos mas não vejo humanidade”. E lembrei-me logo do meu professor do secundário que uma vez me disse que devia ser “mais humana”, em resposta a uma observação minha que dizia que “não andava aqui para libertar a humanidade da opressão. Quanto muito, aliviava a dor de cabeça do meu colega de carteira porque tinha trazido um ben-u-ron.”

“Agora, aliviar todas as dores de cabeça deste mundo?”. “Mesmo que quisesse”, disse-lhe, “que não é claramente o caso, não ia conseguir, porque o que cria dores de cabeça a uns, não cria a outros. E eliminar uma causa de dor de cabeça de uns, ia dar muitas dores de cabeça a outros. Por isso, em vez de ter a pretensão de saber e querer eliminar as dores de cabeça de toda a “humanidade”, resolvo as minhas e as do colega do lado. Pode ser que outros, ao verem como resolvi a minha, resolvam também a deles, se quiserem. Valha-me obrigá-los a resolver aquilo que eu acho que são as dores de cabeça deles! Inclusivamente, professor, sei de muita gente que precisa da dor de cabeça. Li, anteontem, que há muitos escritores que não conseguem escrever sem ela. Nos dias sem dor de cabeça, vão para a praia e põem-se a namorar. Além disso, nos dias seguintes à inactividade intelectual, ficam com uma grande dor de cabeça provocada pela frustração de não avançarem no trabalho.

E quem é que define o que é ser “mais humana”? É o professor? E se eu achar que sou mais humana por não querer que todos os “humanos” sigam a minha ideia de “humanidade”?

Já o estou a ver num alto palanque a recitar o novo “código da humanidade” e a selecionar quem fica de fora das determinações específicas.“Este não é humano, este é quase humano, este é meio humano.”

Se calhar é por isso que agora vendem tantos comprimidos para as dores de cabeça. Ou porque nunca somos suficientemente humanos ou porque, digo eu, cansamo-nos de ser demasiado humanos”.

Belos tempos.