At home she's a tourist.

No Porto, há cada vez menos casas para portuenses. Todas as casas estão a ser restauradas de forma suficientemente burguesa para que nenhum portuense as consiga comprar ou arrendar. E o argumento é que o turismo traz dinheiro, desenvolve o comércio, e melhorará a vida dos portuenses. É simples: pões os portuenses a viver fora do Porto, porque não têm dinheiro para as casas turísticas; pões os portuenses a andar de Yellow Bus, porque os passes da STCP (aka andar de metro e autocarro para ir para o trabalho) estão cada vez mais caros; pões os portuenses a comer fora do Porto, porque não têm dinheiro para almoçar em restaurantes turísticos; pões os portuenses a tomar café em casa, porque não podem pagar cafés do Starbucks e dos cafés gourmet todos os dias; e depois dizes que estás a fazer isso para o bem deles. Deve ser é para o bem de meia dúzia de empresários, que realmente são portuenses. Só que não é para OS portuenses. E não me venham com o argumento que essas novas empresas trazem emprego, o que é verdade mas esconde um facto importante: os mesmos trabalhadores que estão empregados nessas casas, cafés, comércio e restaurantes turísticos, estariam a trabalhar em casas, cafés, comércio e restaurantes para pessoas que vivem cá. E isto não é uma questão de nacionalismo ou regionalismo. É a recusa da lógica economicista de selecção de pessoas, camuflada de lógica benfeitora. Os portuenses têm direito a viver na cidade deles, sem serem empurrados para as periferias porque não dão a ganhar tanto dinheiro como os turistas, que ganham mais nas terras deles, vai-se lá saber porquê. Se calhar tem alguma coisa a ver com isto.

Escolhe a cura.

Nos comentários à minha última crónica, alguns paladinos do progresso negam o que escrevo e dizem que o jornal não devia publicá-la porque não foi comprovada medicamente. E isso fez-me lembrar o comentário que o Luis Oliveira, editor da Antígona, fez sobre o Tratado da Vida Sóbria, do Alvise Cornaro.

Este livro é também um hino  à alegria de viver com saúde, e, acima de tudo, um sério aviso àqueles que se submetem cegamente aos poderes da medicina, depois manipulados e explorados de acordo com os interesses dos consultórios e das multinacionais que fabricam os medicamentos.

Eu já lhes expliquei que o que diz a medicina tanto se me dá como se me deu. Mas eles continuam a enviar-me artigos e a explicar imenso as razões pelas quais eu devia escrever segundo as regras deles e não as minhas. Dizem que os meus textos não são válidos porque não seguem um método, o deles, claro. É tudo uma ladainha de regras e conceitos aos quais eu devo supostamente obedecer.

Dizem-se muito progressistas mas não fazem mais do que substituir deus pela ciência. Põem os conceitos “verdadeiros” e as leis “científicas” no lugar dos dogmas religiosos. Negam conceitos para colocar outros no seu lugar. Tem é de haver conceitos certos e errados, e alguém que lhes diga se o que pensam está de um lado ou de outro. Alguém que valide o que dizem. Ora, o que eu devo fazer é respeitar isso e não escrever. Porque só os superiores pensantes da ciência é que o podem fazer ou legitimar quem o faz. O resto, essa cambada de sapateiros ignorantes, que façam sapatos. Pensar é que não! É impressionante como esta gente não respeita os superiores! E a moda está em todo o lado. Dá para a ciência, para as leis, para os moralistas, para os humanistas e todos os istas que troteiam por aí. Há respeito para todos, menos para nós.

Não posso escrever? Escrevo na mesma. Tenho que esperar que validem o que digo antes de publicar? Não espero. Tenho de ter permissão para fazer? Faço sem ela. É o respeito que me dá permissão? Não respeito. Tenho que justificar porque fiz ou escrevi assim? Não justifico.

Era só o que me faltava escrever o que vocês querem, da forma que vocês querem. Daqui a pouco, tinham ocupado o espaço todo e eu era empurrada para os bordos mais longínquos da vossa terra ideal. Ficava lá na periferia, a fazer-vos vénias, e a pedir esmolinhas de legitimação do meu pensamento.

Doente? Vamos ao filósofo.

Nunca se tratou e se falou tanto de saúde. Fazemos visitas regulares aos hospitais e às clínicas, exames médicos consecutivos, medicamentos, consultas, dietas, "fitness" e todas as outras tentativas de conquistarmos bem-estar. Mas parece que não é suficiente. Continuamos débeis, sem energia, doentes. Para dar uma resposta a esta contradição, procurei em livros e revistas de filósofos, que me responderam assim.

Hipócrates

Se queres curar-te, tens de mudar os hábitos de vida. Qualquer pessoa, independentemente do nível socio-económico, pode ser saudável. A primeira regra no caminho da saúde é usar os alimentos como medicamentos. Alimentar-se bem, portanto. A segunda é caminhar. Pouco. A ideia não é desgastar o corpo mas oxigená-lo. O descanso também é importante. E a terceira é a moderação. Todo o excesso se opõe à natureza. “É perigoso evacuar, alimentar-se, aquecer-se, ou, de qualquer modo, perturbar o organismo, excessiva ou subitamente.” Por último, tem em consideração a estação do ano, a idade, e o local onde vives, para adequares o estilo de vida ao teu meio. Já sabes que os mais novos têm maior necessidade de desgaste energético do que os mais velhos e que, por exemplo, há doenças que aparecem no Inverno e outras no Verão. Resumindo: para seres saudável, come pouco, sobretudo vegetais, caminha meia hora por dia e não faças nem consumas nada em excesso.

Séneca

Até podes fazer tudo o que o Hipócrates diz mas não é isso que vai determinar a tua saúde porque a alma é tudo. Se ter um corpo pleno de saúde é o teu propósito de vida, não te surpreendas se ficares doente. Porque não depende de ti. Todos ficarão doentes alguma vez na vida. A única coisa que depende de ti é a forma como lidas com a doença. E para lidar com ela é preciso domar a mente como se doma um cavalo bravo. O mais importante é “não ceder à propensão de nada fazer para a qual nos inclinamos quando ficamos doentes”. No início, debilitado, tens de agir antes de teres vontade. Tens de forçar os hábitos, até que eles se tornem automáticos, novamente. Continua a alimentar-te correctamente, a arranjares-te, bebe um bocado de vinho, vai dar um passeio. Faz a maioria das coisas que fazias antes de estar doente, apesar de agora exigirem mais esforço. Quando a doença passar, sairás mais forte. O importante é não te deixares vencer. Muitas vezes somos enganados na farmácia porque nos dão medicamentos em vez de princípios. A saúde está na nossa cabeça. Se tiveres medo da doença, ela dominar-te-á.

Descartes

Concordo totalmente com o Hipócrates: comer bem, caminhar e seguir a moderação da natureza. Inclusivamente, foi nas minhas caminhadas matinais que tive a ideia do “Discurso do Método”. Mas o medicamento que mais cura é a alegria. Escreve uma lista do que te alegra e dá prioridade a isso. O conjunto dos teus órgãos funciona como um relógio: se retirares uma peça, tudo se transforma. E, infelizmente, a tua alma e o teu corpo estão conectados. As paixões da alma, o desejo, o amor, o ódio, a alegria e a tristeza são pensamentos que provocam diferentes estados no corpo. Assim, tem cuidado com as prescrições e confia mais na experiência que tens do teu corpo. Segue os teus instintos. “A causa mais comum da febre é a tristeza”, escrevi um dia à minha amiga Élisabeth de Bohéme, a quem dediquei os meus “Princípios de Filosofia”. Se sofreres de um tal estado, desvia a atenção para as coisas simples: olha para as flores, caminha na praia, conversa com amigos, o que te alegrar. A doença é uma coisa um bocado estranha: ela está, ao mesmo tempo, no nosso órgão infectado e no nosso cérebro.

Nietzsche

Esquece tudo o que foi dito até aqui. Todas as propostas éticas ou teóricas não são mais do que a domesticação dos sintomas ou dos afectos. Há sempre quem queira restringir a afirmação da tua vontade, reprimindo os teus instintos, em nome de um tal altruísmo. Supostamente, os médicos pretendem ajudar-te mas o que fazem é dar-te ordens sobre como deves tratar o teu corpo e a tua alma, afirmando a vontade deles, não a tua. Eu passei a vida a sofrer de difteria, sífilis, enxaquecas permanentes e, nos últimos anos, de demência. Portanto, eu pergunto-te: por que é que tens medo da doença? É dela que nasce a “grande saúde”, aquela em que tu usaste a doença para fazer qualquer coisa que não farias se nunca tivesses ficado doente. Se eu não tivesse sofrido tanto, nunca teria escrito nada. A doença obrigou a isolar-me e a tornar-me lúcido sobre as pessoas. Claro que as tuas doenças far-te-ão sofrer, mas não há que ter medo! As sensações de prazer e de desprazer resultam da forma como interpretamos as excitações exteriores. Eu utilizo remédios e já experimentei todas as dietas. Acima de tudo, depende do meu estado de espírito. Mas se insistires para te dar os meus “segredos”, eu digo-te que é caminhar e dançar. Longe de mim propor-te uma terapêutica universal! Eu inclino-me sobretudo para uma “saúde triunfante”, mas também é necessário aceitar o carácter trágico da existência.

Georges Canguilhem

O Nietzsche tem alguma razão no que diz. A atitude médico-paciente “repousa sempre numa relação de obediência, refugiada num tecnicismo que não é mais do que uma forma de dominação. Hoje, já não é o paternalismo benfeitor do médico-pai que está em causa, mas a técnica, armada de benfeitores incontestáveis, que ela prevê, reforçando esta figura do biopoder do Foucault.” Ora, as relações de cuidado não podem ser de obediência. Para te curares, e tendo em conta as tuas novas condições, deves criar as tuas novas regras de vida. Quando se perde o luxo biológico, tal como quando se perde o luxo económico, é preciso modificar os hábitos. Há que se adaptar à nova condição. A ideia não é seguir as normas que os médicos ou quem trata de nós nos impõem, mas reconquistar uma parte da nossa capacidade de normatividade. Por isso é que eu considero que os melhores remédios são as técnicas: quando a mão já não é suficientemente forte para apanhar os objectos, inventamos a pinça. Assim, as doenças são ocasiões para inventar ferramentas que as superam. É o momento para o desenvolvimento de novas capacidades, fazendo deste constrangimento imposto uma ocasião para um desenvolvimento florescente.