Do método.

Eles ficam irritados com o que eu escrevo. Ficam mais irritados com os meus textos do que com qualquer outra coisa, e creio que é por causa da maneira como eu escrevo - não o conteúdo, ou a tese. Dizem que eu não obedeço às regras habituais da retórica, de gramática, de demonstração, e de argumentação; mas, é claro, se eles simplesmente não estivessem interessados, não se irritariam.

Derrida, in Gramatologia.

Demasiado humanos.

Aquilo que é feito por amor está sempre para além do bem e do mal.

Nietzsche, em Para além do Bem e do Mal.

Real pleasure.

Porque os grandes actos da vida, querida, como deves saber, nunca devem ter público.

Vergílio Ferreira, in Em Nome da Terra.

Da imponência.

Não te julgues superior ou inferior, julga-te só quem és se souberes. Porque o inferior ou superior não são teus mas dos outros, ou seja, da tua humilhação perante eles.

Vergílio Ferreira, em Pensar.

Oito motivos para entrar na estalagem dos Oito Odiados.

Tarde livre. A chover. Entrei na sala de cinema a pensar que ia matar três horas com mais um filme do Tarantino. Apesar dos últimos não me terem cativado, é sempre uma escolha segura. Pelo menos, não ia ver xaropadas de amores estereotipo-românticos ou cenários de videojogos. Mas não. O que aconteceu foi que viajei numa montanha, durante uma tempestade de neve, e entrei numa estalagem americana que me abrigou. Sentei-me à lareira, peguei numa caneca de café, e conheci oito pessoas surpreendentes.

Isto costuma acontecer-me na literatura: fascinar-me com as personagens e levá-las comigo para a vida, como se de amigos se tratassem. Sempre que tenho um dilema moral, penso no Rodion, do "Crime e Castigo"; quando tinha colegas de turma que decoravam tudo e não percebiam nada, lembrava-me do Euzebiozinho, d´"Os Maias"; quando um amigo fica muito invejoso e tenta de todas as formas ser importante, sorrio a pensar no Ulrich, d´"O Homem Sem Qualidades"; ou, quando conheço alguém neurótico que tenta agradar toda a gente, lembro-me logo do rapaz da bandoleira cor de laranja, do "Rei Pálido".

Mas foi a primeira vez que me aconteceu no cinema. Vim embora com o Major Marquis Warren, um negro nada típico, muito pouco coitadinho (no filme, obriga um branco a fazer-lhe sexo oral — a cena mais violenta da história — quais jorramentos de sangue qual quê), que sofre a discriminação de uma forma tão imponente, que ridiculariza quem o discrimina; com John Ruth, o homem que enforca pessoas mas é sensível (dá boleia a dois desconhecidos, ganha afecto por Daisy, a condenada, e evita a morte de um odiado); com Daisy Domergue, a assassina assustadora que adora o irmão, e por isso destrói a ideia binária de mulher-boazinha ou mulher-serpente.

Aliás, não há qualquer carga erótica na personagem, o que demonstra bem a inteligência de Tarantino ao delinear mulheres a sério e não bonecas de plástico cinematográficas, como é habitual no cinema, especialmente no americano; com Chris Mannix, o imbecil aparvalhado que de burro não tem nada; com Bob, o mexicano (para além das dicotomias norte-sul, negro-branco, homem-mulher, a questão rácica mexicana também é abordada), que me pôs a rir às gargalhadas com a cena da entrada na estalagem, directo ao cobertor e à lareira, por causa do frio; com Oswaldo Mobray, o homem que tem muitas peneiras mas escrúpulos nenhuns; com Joe Gage, o discreto que faz as maiores atrocidades, sempre com um ar muito inocente; e com o general Sanford Smithers, o velho racista reaccionário que matou meio batalhão de negros na guerra civil mas que é muito sensível e inofensivo quando fala do filho.

Os "Oito Odiados" dão para rir, dão para pensar no estado dos E.U.A., no estado da política e da sociedade em geral, dissertar acerca do que é a justiça e a injustiça, apreciar a complexidade das pessoas, nas suas várias camadas, e entrar num mundo onde não há apenas bons ou maus, bonitos ou feios, pobres ou ricos. Não há nada disso no filme do Tarantino. Apenas personagens densas, boa música e uma belíssima fotografia. Apenas inteligência.

15 anos de música que faz tremer.

Portugal é um país exótico no panorama musical ocidental. Em Inglaterra, nos E.U.A, em França ou na Alemanha há blues, há rock n´roll, punk, pós-punk, industrial, dance rock ou garage; em Portugal há fado, pimba e a música do não aquece nem arrefece.

Como os Parkinsons são daquelas bandas que aquecem muito, em 2000 foram para Inglaterra acelerar os ingleses, que lhes deram aquilo que Portugal não dá aos grandes músicos desobedientes: um grupo de fãs fiel e grandes destaques na comunicação social.

Como o bom aluno que não percebe nada da matéria, mas que copia tudo, a imprensa portuguesa imitou os destaques da imprensa internacional e pôs os Parkinsons em relevo nas páginas dos jornais. Depois, como os hábitos são muito difíceis de mudar, voltaram a encher os artigos com a música do assim-assim, que vende bilhetes para festivais de música de gente muito bem comportada, que só come o que as grandes empresas lhes põem na mesa. É o mundo do continua assim, a comprar-me tudo, que eu ainda tenho muitas roupas, "gadgets", e outras coisas muito "trendy" para te vender, e essa gente do rock porco, sujo e mau, que só gosta da música pela música, não me compra nada e só destabiliza. Enquanto isso, a banda de Victor Torpedo, um dos mais brilhantes músicos portugueses, Afonso Pinto, Pedro Chau e de nove bateristas diferentes (agora, Paula Nozzari), tocavam em grandes festivais europeus e enchiam salas no Japão.

O punk e os Parkinsons são daquelas raridades em Portugal em que as pessoas se reúnem à volta da música porque adoram música e não para serem ricos ou famosos. Claro que se pudessem viver da música, seria perfeito. Pagariam as contas a fazer o que mais amam. Mas não é por isso que fazem música, porque se fosse, não o fariam, já que, na maioria das vezes, perdem mais dinheiro do que aquele que ganham. Em Portugal, só quem está associado a grandes empresas pode ganhar dinheiro com a sua arte e ser dignificado pela comunicação social. E isto tem consequências muito profundas na cultura de um país. Uma cultura que não é livre é uma cultura que mutila o desenvolvimento humano e impede a sua emancipação. Como músico em Portugal, não posso criar o que quero, dizer aquilo que penso das grandes corporações, nem de tudo o que está à sua volta, porque são elas que me editam os meus discos, escrevem sobre os meus concertos, expõem os meus quadros ou publicam os meus livros.

Neste mundo pronto-a-usar, o punk é uma lufada de ar fresco, uma inocência desobediente perdida, onde os amigos pegam em instrumentos, puxam uns acordes e fazem qualquer coisa de novo. O punk diverte, o punk faz abanar as ancas, o punk emancipa. E é isso que os Parkinsons sempre fizerem com o seu público. No sábado passado, em Coimbra, num Salão Brazil a abarrotar de gente, completamente esgotado, mostraram aquilo que são, uma grande banda que incendeia o público e põe toda a gente a vibrar. Cantaram os clássicos, como a "Bad Girl", a "Angel in The Dark" e a "Primitive", cuja letra deu origem ao documentário "A Long Way to Nowhere", sobre a sua história, a ser exibido agora em Portugal; e as mais recentes, dos álbuns da Garagem , uma editora a não perder de vista. Há 15 anos a tocar música que faz tremer. É disto que Portugal precisa.

Secretárias.

A educação é um feito admirável, mas de vez em quando convém não esquecer que não se ensina nada que valha a pena saber.

Oscar Wilde, em O Crítico como Artista.

Arder com as serpentinas.

Por volta de 1900, a ala radical da esquerda adoptou o cinismo senhorial da direita. A competição entre a consciência cínico-defensiva dos antigos detentores do poder e o cinismo utópico-defensivo dos novos gerou o drama político-moral do século XX. Na corrida à consciência mais dura dos factos duros, o Diabo e Belzebu acusavam-se mutuamente. Da concorrência das consciências nasceu o lusco-fusco característico dos tempos presentes - o mútuo espiar-se das ideologias, a assimilação dos contrários, a modernização da impostura -, em resumo, aquela situação que lançava a filosofia no vazio em que o mentiroso chama mentiroso ao mentiroso.
(...)
Depois da década da reconstrução e das décadas das utopias e das "alternativas", tudo se passa como se um elã ingénuo tivesse subitamente desaparecido. Temem-se catástrofes e novos valores têm grande procura, como os analgésicos. No entanto, a época é cínica e sabe que o é: os novos valores têm pernas curtas.
(...)
Uma cultura neopagã que não acredita na vida para além da morte, procura antes desta.
(...)
A velha social-democracia anunciara o slogan "saber é poder" como uma judiciosa receita prática. Pretendia-se afirmar que uma pessoa devia aprender qualquer coisa como deve ser, para mais tarde, vir a melhorar a sua situação. O dito era ditado por uma fé pequeno-burguesa na escola. Essa fé está hoje em decomposição. Só entre os nossos jovens médicos cínicos há uma linha clara que liga o curso ao nível de vida. Quase todos os outros vivem com o risco de aprender em vão.
(...)
Uma pessoa tem de começar por ter um vida melhor para depois poder vir a aprender qualquer coisa razoável. A socialização pela escolarização tal como se desenvolve no nosso país é o embrutecimento a priori.
(...)
No fundo, já ninguém acredita que a aprendizagem de hoje resolve os "problemas" de amanhã; é quase certo, pelo contrário, que os desencadeia.
(...)
Um sem-fim de serpentinas retóricas
(...)
Ser "racional" é inserir-se numa relação particular, raramente feliz, com o sensível. "Sê racional" significa praticamente isto: não te fies nos teus impulsos, não escutes o teu corpo, aprende a controlar-te - e começa por controlar a tua própria sensibilidade. No entanto, intelecto e sensibilidade são inseparáveis.
(...)
A neurose europeia encara a felicidade como objectivo e o esforço da razão como o caminho que a ela leva. Há que romper a sua coacção. (...) o objectivo é o deixar-andar mais ingénuo.
(...) chegar ao que interessa. É pelo exame dessa motivação que quero continuar. Uma mistura de cinismo, de sexismo, de "objectividade" e de psicologismo constitui o estado de alma da superstrutura do Ocidente.
(...)
Prometo não prometer nada, sobretudo novos valores.

Peter Sloterdijk, em Crítica da Razão Cínica.

Levar na cabeça.

“-Gosto muito de bater na cabeça das pessoas com uma certa força.
-Gosta?
-Sim, agrada-me. Dá-me prazer. Uma pessoa vai a passar e eu chamo-a: ó, desculpe, Vossa Excelência?!
(…)
-Ela aproxima-se e pergunta-me: o que pretende? E eu, com toda a educação e não querendo esconder nada, digo: gostava de bater com certa força na cabeça de Vossa Excelência. É isso que eu digo, apenas. Nem mais uma palavra.
(…)
-E o que acontece?
(…)
-O que acontece é isto (…) eles, sem excepção, passado esse momento de silêncio, respondem: ok.
(…)
-Sim, é surpreendente, no mínimo.
-E o que acontece depois? Sempre lhes bate com força na cabeça?
-Sim, bato.
-E eles?
-Ficam quietos até eu parar de lhes bater com força na cabeça.
-E depois?
-Depois vão-se embora.
-Vão-se embora?
-Sim, continuam o seu percurso.
(…)
-Sim. Uma vez tentei fazer isso no campo. (…).
-Começo a esfregar as mãos e a pensar: aí vem alguém a quem vou poder bater com uma certa força na cabeça (…).
- (…) E o camponês fica em silêncio durante alguns segundos, exactamente como os da cidade, e depois desse silêncio de reflexão responde (veja bem!): NÃO.
-Não?
-Exacto. NÃO. Não quer que eu lhe bata com certa força na cabeça.
-Isso é incrível.
-É. Por isso é que eu gosto mais de viver na cidade.
-Os camponeses são mais fechados, não é?
-Sim, muito mais."

O atraso do campo, Gonçalo M. Tavares, em O Torcicologologista, Excelência.

Vagabundos.

“Todos os que parecem suspeitos, hostis e perigosos para a boa burguesia”, disse Stirner, “podem ser reunidos sob o nome de “vagabundos”; todas as formas de vida vagabundas desagradam a burguesia. E também há vagabundos intelectuais, para quem a morada hereditária dos seus pais parece demasiado apertada e opressiva para que eles se possam contentar com o seu espaço restrito e, assim, procuram mais espaço e luz noutro sítio. Em vez de permanecerem enrolados na caverna da família, mexendo as cinzas da opinião moderada, em vez de aceitarem o que tem dado conforto e alívio para milhares de gerações como verdade irrefutável, ultrapassam todos os limites da tradição e correm selvagens com a sua crítica imprudente e com a sua indomável mania da dúvida. Esses vagabundos extravagantes formam a classe do instável, do inquieto, do volátil; e quando saem para dar voz à suas naturezas incertas, são chamados de indisciplinados, impetuosos, fanáticos..."

Renzo Novatore, parafraseando poeticamente Stirner.

Imagens no subsolo.

-Ontem, sonhei com ele. Tinha ar de quem ia para um concerto de rock e olhou para mim como se eu fosse uma aparição. Disse-me que gostava de música, praia e sítios sem ostentação. Perguntei-lhe o que fazia para ganhar a vida. Respondeu que era responsável mas não fazia disso profissão. Fazia o que fosse preciso. Tinha dinheiro para não depender de ninguém. Não lia muito, porque isso dava-lhe cabo da cabeça, mas gostava muito das histórias contadas, dos filmes e dos serões. Falava enquanto organizava umas coisas lá em casa e ia mexendo o corpo, à medida que mudava os discos na aparelhagem de som. Estava moreno. Era verão.

Apatheia.

Ser popular é uma fatalidade da qual já fui vítima.