Quando o capitalismo "flirta" com o fascismo.*

Continuo a rir-me muito com o facto da Catarina Portas, de cognome "a empreendedora das andorinhas de louça e cabazes de 100€ com uma garrafa de vinho do Porto corrente, dois sabonetes e uma lata de atum”, proprietária das lojas com o conceito mais neo-fascista que conheço - vender produtos "artesanais" portugueses (a maioria é industrial mas com design retro, pelo que de artesanais devem ser, talvez, as embalagens), em formato “gourmet”, e a preços exorbitantes (que não são para pagar a mão-de-obra que os produz mas a ela e aos proprietários das grandes marcas que os fabricam), numa espécie de disneylândia saudosista do Portugal antigo - veio para uma revista cor-de-rosa dizer que, em certo sentido, é um “bocadinho” anarquista. “Estes produtos são nossos. Estes produtos somos nós.”, diz o manifesto da loja da senhora. Alguém que lhe explique que ninguém pertence ao "nós" dela, a não ser duas ou três marcas de loiça, lápis de grafite e de sabonetes cheios de perfume industrial que a Oprah adora oferecer no Natal. Tudo impossível de ser comprado por um português de ordenado médio. Mas com muito estilo, tã?

*

Na fábrica de comida.

Não havia alternativa. Para sobreviver, teria que trabalhar nos tempos livres que lhe restavam. Todos os dias, apenas parava para comer e dormir, o que não conseguia fazer pela falta de sentido de vida. A ela, nem emprego lhe davam. Diziam que eram trabalhos muito exigentes para mulheres.

No dia seguinte, vi isto afixado:

Aviso todas as pessoas para se retirarem da fábrica até às 9h55, hora exacta em que será bombardeada. O objectivo é alertar para a submissão do amor ao capitalismo, pelo que apenas pretendemos explodir com as instalações. O anarquista continuará no anonimato. Apenas se sabe que este é um acto feminista.

Sobreviveram todos. Agora, já não é a fábrica que faz a comida. Somos nós que plantamos, transformamos, cozinhamos e comemos. Todos têm tempo e conseguem dormir. E, diz-se por aí, o nosso ex-chefe, que estava impotente, faz amor muitas vezes.

Do método.

Eles ficam irritados com o que eu escrevo. Ficam mais irritados com os meus textos do que com qualquer outra coisa, e creio que é por causa da maneira como eu escrevo - não o conteúdo, ou a tese. Dizem que eu não obedeço às regras habituais da retórica, de gramática, de demonstração, e de argumentação; mas, é claro, se eles simplesmente não estivessem interessados, não se irritariam.

Derrida, in Gramatologia.

Demasiado humanos.

Aquilo que é feito por amor está sempre para além do bem e do mal.

Nietzsche, em Para além do Bem e do Mal.

Real pleasure.

Porque os grandes actos da vida, querida, como deves saber, nunca devem ter público.

Vergílio Ferreira, in Em Nome da Terra.

Da imponência.

Não te julgues superior ou inferior, julga-te só quem és se souberes. Porque o inferior ou superior não são teus mas dos outros, ou seja, da tua humilhação perante eles.

Vergílio Ferreira, em Pensar.

Oito motivos para entrar na estalagem dos Oito Odiados.

Tarde livre. A chover. Entrei na sala de cinema a pensar que ia matar três horas com mais um filme do Tarantino. Apesar dos últimos não me terem cativado, é sempre uma escolha segura. Pelo menos, não ia ver xaropadas de amores estereotipo-românticos ou cenários de videojogos. Mas não. O que aconteceu foi que viajei numa montanha, durante uma tempestade de neve, e entrei numa estalagem americana que me abrigou. Sentei-me à lareira, peguei numa caneca de café, e conheci oito pessoas surpreendentes.

Isto costuma acontecer-me na literatura: fascinar-me com as personagens e levá-las comigo para a vida, como se de amigos se tratassem. Sempre que tenho um dilema moral, penso no Rodion, do "Crime e Castigo"; quando tinha colegas de turma que decoravam tudo e não percebiam nada, lembrava-me do Euzebiozinho, d´"Os Maias"; quando um amigo fica muito invejoso e tenta de todas as formas ser importante, sorrio a pensar no Ulrich, d´"O Homem Sem Qualidades"; ou, quando conheço alguém neurótico que tenta agradar toda a gente, lembro-me logo do rapaz da bandoleira cor de laranja, do "Rei Pálido".

Mas foi a primeira vez que me aconteceu no cinema. Vim embora com o Major Marquis Warren, um negro nada típico, muito pouco coitadinho (no filme, obriga um branco a fazer-lhe sexo oral — a cena mais violenta da história — quais jorramentos de sangue qual quê), que sofre a discriminação de uma forma tão imponente, que ridiculariza quem o discrimina; com John Ruth, o homem que enforca pessoas mas é sensível (dá boleia a dois desconhecidos, ganha afecto por Daisy, a condenada, e evita a morte de um odiado); com Daisy Domergue, a assassina assustadora que adora o irmão, e por isso destrói a ideia binária de mulher-boazinha ou mulher-serpente.

Aliás, não há qualquer carga erótica na personagem, o que demonstra bem a inteligência de Tarantino ao delinear mulheres a sério e não bonecas de plástico cinematográficas, como é habitual no cinema, especialmente no americano; com Chris Mannix, o imbecil aparvalhado que de burro não tem nada; com Bob, o mexicano (para além das dicotomias norte-sul, negro-branco, homem-mulher, a questão rácica mexicana também é abordada), que me pôs a rir às gargalhadas com a cena da entrada na estalagem, directo ao cobertor e à lareira, por causa do frio; com Oswaldo Mobray, o homem que tem muitas peneiras mas escrúpulos nenhuns; com Joe Gage, o discreto que faz as maiores atrocidades, sempre com um ar muito inocente; e com o general Sanford Smithers, o velho racista reaccionário que matou meio batalhão de negros na guerra civil mas que é muito sensível e inofensivo quando fala do filho.

Os "Oito Odiados" dão para rir, dão para pensar no estado dos E.U.A., no estado da política e da sociedade em geral, dissertar acerca do que é a justiça e a injustiça, apreciar a complexidade das pessoas, nas suas várias camadas, e entrar num mundo onde não há apenas bons ou maus, bonitos ou feios, pobres ou ricos. Não há nada disso no filme do Tarantino. Apenas personagens densas, boa música e uma belíssima fotografia. Apenas inteligência.

15 anos de música que faz tremer.

Portugal é um país exótico no panorama musical ocidental. Em Inglaterra, nos E.U.A, em França ou na Alemanha há blues, há rock n´roll, punk, pós-punk, industrial, dance rock ou garage; em Portugal há fado, pimba e a música do não aquece nem arrefece.

Como os Parkinsons são daquelas bandas que aquecem muito, em 2000 foram para Inglaterra acelerar os ingleses, que lhes deram aquilo que Portugal não dá aos grandes músicos desobedientes: um grupo de fãs fiel e grandes destaques na comunicação social.

Como o bom aluno que não percebe nada da matéria, mas que copia tudo, a imprensa portuguesa imitou os destaques da imprensa internacional e pôs os Parkinsons em relevo nas páginas dos jornais. Depois, como os hábitos são muito difíceis de mudar, voltaram a encher os artigos com a música do assim-assim, que vende bilhetes para festivais de música de gente muito bem comportada, que só come o que as grandes empresas lhes põem na mesa. É o mundo do continua assim, a comprar-me tudo, que eu ainda tenho muitas roupas, "gadgets", e outras coisas muito "trendy" para te vender, e essa gente do rock porco, sujo e mau, que só gosta da música pela música, não me compra nada e só destabiliza. Enquanto isso, a banda de Victor Torpedo, um dos mais brilhantes músicos portugueses, Afonso Pinto, Pedro Chau e de nove bateristas diferentes (agora, Paula Nozzari), tocavam em grandes festivais europeus e enchiam salas no Japão.

O punk e os Parkinsons são daquelas raridades em Portugal em que as pessoas se reúnem à volta da música porque adoram música e não para serem ricos ou famosos. Claro que se pudessem viver da música, seria perfeito. Pagariam as contas a fazer o que mais amam. Mas não é por isso que fazem música, porque se fosse, não o fariam, já que, na maioria das vezes, perdem mais dinheiro do que aquele que ganham. Em Portugal, só quem está associado a grandes empresas pode ganhar dinheiro com a sua arte e ser dignificado pela comunicação social. E isto tem consequências muito profundas na cultura de um país. Uma cultura que não é livre é uma cultura que mutila o desenvolvimento humano e impede a sua emancipação. Como músico em Portugal, não posso criar o que quero, dizer aquilo que penso das grandes corporações, nem de tudo o que está à sua volta, porque são elas que me editam os meus discos, escrevem sobre os meus concertos, expõem os meus quadros ou publicam os meus livros.

Neste mundo pronto-a-usar, o punk é uma lufada de ar fresco, uma inocência desobediente perdida, onde os amigos pegam em instrumentos, puxam uns acordes e fazem qualquer coisa de novo. O punk diverte, o punk faz abanar as ancas, o punk emancipa. E é isso que os Parkinsons sempre fizerem com o seu público. No sábado passado, em Coimbra, num Salão Brazil a abarrotar de gente, completamente esgotado, mostraram aquilo que são, uma grande banda que incendeia o público e põe toda a gente a vibrar. Cantaram os clássicos, como a "Bad Girl", a "Angel in The Dark" e a "Primitive", cuja letra deu origem ao documentário "A Long Way to Nowhere", sobre a sua história, a ser exibido agora em Portugal; e as mais recentes, dos álbuns da Garagem , uma editora a não perder de vista. Há 15 anos a tocar música que faz tremer. É disto que Portugal precisa.

Secretárias.

A educação é um feito admirável, mas de vez em quando convém não esquecer que não se ensina nada que valha a pena saber.

Oscar Wilde, em O Crítico como Artista.

Arder com as serpentinas.

Por volta de 1900, a ala radical da esquerda adoptou o cinismo senhorial da direita. A competição entre a consciência cínico-defensiva dos antigos detentores do poder e o cinismo utópico-defensivo dos novos gerou o drama político-moral do século XX. Na corrida à consciência mais dura dos factos duros, o Diabo e Belzebu acusavam-se mutuamente. Da concorrência das consciências nasceu o lusco-fusco característico dos tempos presentes - o mútuo espiar-se das ideologias, a assimilação dos contrários, a modernização da impostura -, em resumo, aquela situação que lançava a filosofia no vazio em que o mentiroso chama mentiroso ao mentiroso.
(...)
Depois da década da reconstrução e das décadas das utopias e das "alternativas", tudo se passa como se um elã ingénuo tivesse subitamente desaparecido. Temem-se catástrofes e novos valores têm grande procura, como os analgésicos. No entanto, a época é cínica e sabe que o é: os novos valores têm pernas curtas.
(...)
Uma cultura neopagã que não acredita na vida para além da morte, procura antes desta.
(...)
A velha social-democracia anunciara o slogan "saber é poder" como uma judiciosa receita prática. Pretendia-se afirmar que uma pessoa devia aprender qualquer coisa como deve ser, para mais tarde, vir a melhorar a sua situação. O dito era ditado por uma fé pequeno-burguesa na escola. Essa fé está hoje em decomposição. Só entre os nossos jovens médicos cínicos há uma linha clara que liga o curso ao nível de vida. Quase todos os outros vivem com o risco de aprender em vão.
(...)
Uma pessoa tem de começar por ter um vida melhor para depois poder vir a aprender qualquer coisa razoável. A socialização pela escolarização tal como se desenvolve no nosso país é o embrutecimento a priori.
(...)
No fundo, já ninguém acredita que a aprendizagem de hoje resolve os "problemas" de amanhã; é quase certo, pelo contrário, que os desencadeia.
(...)
Um sem-fim de serpentinas retóricas
(...)
Ser "racional" é inserir-se numa relação particular, raramente feliz, com o sensível. "Sê racional" significa praticamente isto: não te fies nos teus impulsos, não escutes o teu corpo, aprende a controlar-te - e começa por controlar a tua própria sensibilidade. No entanto, intelecto e sensibilidade são inseparáveis.
(...)
A neurose europeia encara a felicidade como objectivo e o esforço da razão como o caminho que a ela leva. Há que romper a sua coacção. (...) o objectivo é o deixar-andar mais ingénuo.
(...) chegar ao que interessa. É pelo exame dessa motivação que quero continuar. Uma mistura de cinismo, de sexismo, de "objectividade" e de psicologismo constitui o estado de alma da superstrutura do Ocidente.
(...)
Prometo não prometer nada, sobretudo novos valores.

Peter Sloterdijk, em Crítica da Razão Cínica.

Levar na cabeça.

“-Gosto muito de bater na cabeça das pessoas com uma certa força.
-Gosta?
-Sim, agrada-me. Dá-me prazer. Uma pessoa vai a passar e eu chamo-a: ó, desculpe, Vossa Excelência?!
(…)
-Ela aproxima-se e pergunta-me: o que pretende? E eu, com toda a educação e não querendo esconder nada, digo: gostava de bater com certa força na cabeça de Vossa Excelência. É isso que eu digo, apenas. Nem mais uma palavra.
(…)
-E o que acontece?
(…)
-O que acontece é isto (…) eles, sem excepção, passado esse momento de silêncio, respondem: ok.
(…)
-Sim, é surpreendente, no mínimo.
-E o que acontece depois? Sempre lhes bate com força na cabeça?
-Sim, bato.
-E eles?
-Ficam quietos até eu parar de lhes bater com força na cabeça.
-E depois?
-Depois vão-se embora.
-Vão-se embora?
-Sim, continuam o seu percurso.
(…)
-Sim. Uma vez tentei fazer isso no campo. (…).
-Começo a esfregar as mãos e a pensar: aí vem alguém a quem vou poder bater com uma certa força na cabeça (…).
- (…) E o camponês fica em silêncio durante alguns segundos, exactamente como os da cidade, e depois desse silêncio de reflexão responde (veja bem!): NÃO.
-Não?
-Exacto. NÃO. Não quer que eu lhe bata com certa força na cabeça.
-Isso é incrível.
-É. Por isso é que eu gosto mais de viver na cidade.
-Os camponeses são mais fechados, não é?
-Sim, muito mais."

O atraso do campo, Gonçalo M. Tavares, em O Torcicologologista, Excelência.

Vagabundos.

“Todos os que parecem suspeitos, hostis e perigosos para a boa burguesia”, disse Stirner, “podem ser reunidos sob o nome de “vagabundos”; todas as formas de vida vagabundas desagradam a burguesia. E também há vagabundos intelectuais, para quem a morada hereditária dos seus pais parece demasiado apertada e opressiva para que eles se possam contentar com o seu espaço restrito e, assim, procuram mais espaço e luz noutro sítio. Em vez de permanecerem enrolados na caverna da família, mexendo as cinzas da opinião moderada, em vez de aceitarem o que tem dado conforto e alívio para milhares de gerações como verdade irrefutável, ultrapassam todos os limites da tradição e correm selvagens com a sua crítica imprudente e com a sua indomável mania da dúvida. Esses vagabundos extravagantes formam a classe do instável, do inquieto, do volátil; e quando saem para dar voz à suas naturezas incertas, são chamados de indisciplinados, impetuosos, fanáticos..."

Renzo Novatore, parafraseando poeticamente Stirner.

Imagens no subsolo.

-Ontem, sonhei com ele. Tinha ar de quem ia para um concerto de rock e olhou para mim como se eu fosse uma aparição. Disse-me que gostava de música, praia e sítios sem ostentação. Perguntei-lhe o que fazia para ganhar a vida. Respondeu que era responsável mas não fazia disso profissão. Fazia o que fosse preciso. Tinha dinheiro para não depender de ninguém. Não lia muito, porque isso dava-lhe cabo da cabeça, mas gostava muito das histórias contadas, dos filmes e dos serões. Falava enquanto organizava umas coisas lá em casa e ia mexendo o corpo, à medida que mudava os discos na aparelhagem de som. Estava moreno. Era verão.

Apatheia.

Ser popular é uma fatalidade da qual já fui vítima.

At home she's a tourist.

No Porto, há cada vez menos casas para portuenses. Todas as casas estão a ser restauradas de forma suficientemente burguesa para que nenhum portuense as consiga comprar ou arrendar. E o argumento é que o turismo traz dinheiro, desenvolve o comércio, e melhorará a vida dos portuenses. É simples: pões os portuenses a viver fora do Porto, porque não têm dinheiro para as casas turísticas; pões os portuenses a andar de Yellow Bus, porque os passes da STCP (aka andar de metro e autocarro para ir para o trabalho) estão cada vez mais caros; pões os portuenses a comer fora do Porto, porque não têm dinheiro para almoçar em restaurantes turísticos; pões os portuenses a tomar café em casa, porque não podem pagar cafés do Starbucks e dos cafés gourmet todos os dias; e depois dizes que estás a fazer isso para o bem deles. Deve ser é para o bem de meia dúzia de empresários, que realmente são portuenses. Só que não é para OS portuenses. E não me venham com o argumento que essas novas empresas trazem emprego, o que é verdade mas esconde um facto importante: os mesmos trabalhadores que estão empregados nessas casas, cafés, comércio e restaurantes turísticos, estariam a trabalhar em casas, cafés, comércio e restaurantes para pessoas que vivem cá. E isto não é uma questão de nacionalismo ou regionalismo. É a recusa da lógica economicista de selecção de pessoas, camuflada de lógica benfeitora. Os portuenses têm direito a viver na cidade deles, sem serem empurrados para as periferias porque não dão a ganhar tanto dinheiro como os turistas, que ganham mais nas terras deles, vai-se lá saber porquê. Se calhar tem alguma coisa a ver com isto.

Escolhe a cura.

Nos comentários à minha última crónica, alguns paladinos do progresso negam o que escrevo e dizem que o jornal não devia publicá-la porque não foi comprovada medicamente. E isso fez-me lembrar o comentário que o Luis Oliveira, editor da Antígona, fez sobre o Tratado da Vida Sóbria, do Alvise Cornaro.

Este livro é também um hino  à alegria de viver com saúde, e, acima de tudo, um sério aviso àqueles que se submetem cegamente aos poderes da medicina, depois manipulados e explorados de acordo com os interesses dos consultórios e das multinacionais que fabricam os medicamentos.

Eu já lhes expliquei que o que diz a medicina tanto se me dá como se me deu. Mas eles continuam a enviar-me artigos e a explicar imenso as razões pelas quais eu devia escrever segundo as regras deles e não as minhas. Dizem que os meus textos não são válidos porque não seguem um método, o deles, claro. É tudo uma ladainha de regras e conceitos aos quais eu devo supostamente obedecer.

Dizem-se muito progressistas mas não fazem mais do que substituir deus pela ciência. Põem os conceitos “verdadeiros” e as leis “científicas” no lugar dos dogmas religiosos. Negam conceitos para colocar outros no seu lugar. Tem é de haver conceitos certos e errados, e alguém que lhes diga se o que pensam está de um lado ou de outro. Alguém que valide o que dizem. Ora, o que eu devo fazer é respeitar isso e não escrever. Porque só os superiores pensantes da ciência é que o podem fazer ou legitimar quem o faz. O resto, essa cambada de sapateiros ignorantes, que façam sapatos. Pensar é que não! É impressionante como esta gente não respeita os superiores! E a moda está em todo o lado. Dá para a ciência, para as leis, para os moralistas, para os humanistas e todos os istas que troteiam por aí. Há respeito para todos, menos para nós.

Não posso escrever? Escrevo na mesma. Tenho que esperar que validem o que digo antes de publicar? Não espero. Tenho de ter permissão para fazer? Faço sem ela. É o respeito que me dá permissão? Não respeito. Tenho que justificar porque fiz ou escrevi assim? Não justifico.

Era só o que me faltava escrever o que vocês querem, da forma que vocês querem. Daqui a pouco, tinham ocupado o espaço todo e eu era empurrada para os bordos mais longínquos da vossa terra ideal. Ficava lá na periferia, a fazer-vos vénias, e a pedir esmolinhas de legitimação do meu pensamento.

Doente? Vamos ao filósofo.

Nunca se tratou e se falou tanto de saúde. Fazemos visitas regulares aos hospitais e às clínicas, exames médicos consecutivos, medicamentos, consultas, dietas, "fitness" e todas as outras tentativas de conquistarmos bem-estar. Mas parece que não é suficiente. Continuamos débeis, sem energia, doentes. Para dar uma resposta a esta contradição, procurei em livros e revistas de filósofos, que me responderam assim.

Hipócrates

Se queres curar-te, tens de mudar os hábitos de vida. Qualquer pessoa, independentemente do nível socio-económico, pode ser saudável. A primeira regra no caminho da saúde é usar os alimentos como medicamentos. Alimentar-se bem, portanto. A segunda é caminhar. Pouco. A ideia não é desgastar o corpo mas oxigená-lo. O descanso também é importante. E a terceira é a moderação. Todo o excesso se opõe à natureza. “É perigoso evacuar, alimentar-se, aquecer-se, ou, de qualquer modo, perturbar o organismo, excessiva ou subitamente.” Por último, tem em consideração a estação do ano, a idade, e o local onde vives, para adequares o estilo de vida ao teu meio. Já sabes que os mais novos têm maior necessidade de desgaste energético do que os mais velhos e que, por exemplo, há doenças que aparecem no Inverno e outras no Verão. Resumindo: para seres saudável, come pouco, sobretudo vegetais, caminha meia hora por dia e não faças nem consumas nada em excesso.

Séneca

Até podes fazer tudo o que o Hipócrates diz mas não é isso que vai determinar a tua saúde porque a alma é tudo. Se ter um corpo pleno de saúde é o teu propósito de vida, não te surpreendas se ficares doente. Porque não depende de ti. Todos ficarão doentes alguma vez na vida. A única coisa que depende de ti é a forma como lidas com a doença. E para lidar com ela é preciso domar a mente como se doma um cavalo bravo. O mais importante é “não ceder à propensão de nada fazer para a qual nos inclinamos quando ficamos doentes”. No início, debilitado, tens de agir antes de teres vontade. Tens de forçar os hábitos, até que eles se tornem automáticos, novamente. Continua a alimentar-te correctamente, a arranjares-te, bebe um bocado de vinho, vai dar um passeio. Faz a maioria das coisas que fazias antes de estar doente, apesar de agora exigirem mais esforço. Quando a doença passar, sairás mais forte. O importante é não te deixares vencer. Muitas vezes somos enganados na farmácia porque nos dão medicamentos em vez de princípios. A saúde está na nossa cabeça. Se tiveres medo da doença, ela dominar-te-á.

Descartes

Concordo totalmente com o Hipócrates: comer bem, caminhar e seguir a moderação da natureza. Inclusivamente, foi nas minhas caminhadas matinais que tive a ideia do “Discurso do Método”. Mas o medicamento que mais cura é a alegria. Escreve uma lista do que te alegra e dá prioridade a isso. O conjunto dos teus órgãos funciona como um relógio: se retirares uma peça, tudo se transforma. E, infelizmente, a tua alma e o teu corpo estão conectados. As paixões da alma, o desejo, o amor, o ódio, a alegria e a tristeza são pensamentos que provocam diferentes estados no corpo. Assim, tem cuidado com as prescrições e confia mais na experiência que tens do teu corpo. Segue os teus instintos. “A causa mais comum da febre é a tristeza”, escrevi um dia à minha amiga Élisabeth de Bohéme, a quem dediquei os meus “Princípios de Filosofia”. Se sofreres de um tal estado, desvia a atenção para as coisas simples: olha para as flores, caminha na praia, conversa com amigos, o que te alegrar. A doença é uma coisa um bocado estranha: ela está, ao mesmo tempo, no nosso órgão infectado e no nosso cérebro.

Nietzsche

Esquece tudo o que foi dito até aqui. Todas as propostas éticas ou teóricas não são mais do que a domesticação dos sintomas ou dos afectos. Há sempre quem queira restringir a afirmação da tua vontade, reprimindo os teus instintos, em nome de um tal altruísmo. Supostamente, os médicos pretendem ajudar-te mas o que fazem é dar-te ordens sobre como deves tratar o teu corpo e a tua alma, afirmando a vontade deles, não a tua. Eu passei a vida a sofrer de difteria, sífilis, enxaquecas permanentes e, nos últimos anos, de demência. Portanto, eu pergunto-te: por que é que tens medo da doença? É dela que nasce a “grande saúde”, aquela em que tu usaste a doença para fazer qualquer coisa que não farias se nunca tivesses ficado doente. Se eu não tivesse sofrido tanto, nunca teria escrito nada. A doença obrigou a isolar-me e a tornar-me lúcido sobre as pessoas. Claro que as tuas doenças far-te-ão sofrer, mas não há que ter medo! As sensações de prazer e de desprazer resultam da forma como interpretamos as excitações exteriores. Eu utilizo remédios e já experimentei todas as dietas. Acima de tudo, depende do meu estado de espírito. Mas se insistires para te dar os meus “segredos”, eu digo-te que é caminhar e dançar. Longe de mim propor-te uma terapêutica universal! Eu inclino-me sobretudo para uma “saúde triunfante”, mas também é necessário aceitar o carácter trágico da existência.

Georges Canguilhem

O Nietzsche tem alguma razão no que diz. A atitude médico-paciente “repousa sempre numa relação de obediência, refugiada num tecnicismo que não é mais do que uma forma de dominação. Hoje, já não é o paternalismo benfeitor do médico-pai que está em causa, mas a técnica, armada de benfeitores incontestáveis, que ela prevê, reforçando esta figura do biopoder do Foucault.” Ora, as relações de cuidado não podem ser de obediência. Para te curares, e tendo em conta as tuas novas condições, deves criar as tuas novas regras de vida. Quando se perde o luxo biológico, tal como quando se perde o luxo económico, é preciso modificar os hábitos. Há que se adaptar à nova condição. A ideia não é seguir as normas que os médicos ou quem trata de nós nos impõem, mas reconquistar uma parte da nossa capacidade de normatividade. Por isso é que eu considero que os melhores remédios são as técnicas: quando a mão já não é suficientemente forte para apanhar os objectos, inventamos a pinça. Assim, as doenças são ocasiões para inventar ferramentas que as superam. É o momento para o desenvolvimento de novas capacidades, fazendo deste constrangimento imposto uma ocasião para um desenvolvimento florescente.

Amores, hipsters e fotografias.

Há vezes em que as respostas aos meus textos são melhores do que os próprios. É o caso desta, do Filipe Zenhas Mesquita.

Boa noite,

Terminei de cavilar a minha ideia e é a seguinte:

Da mesma maneira que tu dizes que a malta posta fotos na noite para impressionar/existir aos olhos da desejada, antigamente escreviam-se poemas de amor. O jovem afectado dava-se ares de poeta tuberculoso e lírico. Acho que o poeminha mais tarde se transformou no hobby da fotografia amadora. Com maior poder de compra e menos leituras (parece um paradoxo), a malta começou a comprar câmaras de fotos cada vez mais caras e a tirar fotos cada vez piores. Recordo-me de ver os blogs de fotografia cheias de fotos a preto e branco dos mendigos e dos pombos dos Aliados e S. Bento. A fotografia e a poesia eram, portanto, duas formas de surgir aos olhos da desejada como alma sensível e como de alguma forma assombrada pela ausência do amor, como que a reclamar uma regeneração pela sua presença. Com o passar dos tempos e com o aumento do poder de compra, estas formas ainda relativamente intelectuais de idealização do eu perderam lugar para o culto do corpo. O metrossexual é o alvor cavernícola do hipster. "O jovem" afectado dedica-se ao seu corpo de forma a construir a imagem ideal de si. Como esta relação entre alma/corpo é extremamente clivada e pode conduzir rapidamente à loucura e a comportamentos sexuais bizarros, surge o hipster. O hipster engole todas as formas de idealização do jovem romântico anteriores. A poesia lírica, a fotografia amadora e o culto do corpo. É a construção de uma visão permanente do outro em nós. mas de um outro completamente idealizado e, portanto, um eu completamente asfixiado por essa idealização. De forma a açambarcar o máximo possível, não se pode implicar realmente com nada. Coca-cola zero. As possibilidades de uma existência infinita, e ao mesmo tempo segura, são enormes. Existe uma simbiose entre o jovem e a cidade, criando um plano sem ponto de fuga. Onde se comia uma porcaria qualquer, hoje come-se o melhor cachorro do mundo e arredores por 10 euros. Uma situação ideal. Uma opção segura. Substitui-se a cidade pelo destino turístico, onde sempre se chega mas nunca onde se está. O mundo resume-se a meias escolhas, onde sempre se pode escolher outra vez porque escolhemos sempre o mesmo.
Resumindo: no esforço de agradar ao outro esquecemos-mos de perguntar ao outro o que lhe agrada. Esta armadilha tornou-se fatal porque jorra dinheiro e tranquilidade.

Sobre os concertos de We Trust e X-Wife, ontem, na Casa da Música.

Cheguei à igreja, desculpem, ao concerto dos We Trust, às onze e meia. Estava cheio de adolescentes muito arranjadinhos, sem cabelo à tijela. Uma espécie de mocidade portuguesa mas com telemóveis topo de gama e com ares muito relaxados. Tinham ido ouvir gospel-outkast e via-se que se sentiam muito felizes. O vocalista estava sempre a dizer “estou muito feliz”, “sejam felizes”, e tentava dançar como o Justin Timberlake, apesar de achar que estava a dançar à James Murphy. Depois, para apelar aos aplausos, fazia um movimento muito esquisito com as mãos, como bater palmas, mas em versão mecanizada, que parava segundos antes das palmas das mãos se tocarem. Ou seja, abro braços, fecho braços, simulo que vou dar uma salva de palmas mas afinal não dou. Era só para verem como se faz.
Entretanto, junta-se a Mariah Carey, uma rapariga que, pela expressão do vocalista, teve muita sorte em pisar o palco com ele e de poder gesticular a voz entre graves e agudos, com os olhos fechados, e movimentos faciais de sofrimento, ou outro sentimento muito profundo, cuja tradução não me sinto capaz de fazer. Seguiu-se o pedido para ligarem as luzes dos telemóveis e, todos juntos, todos ju-un-tos, fazerem uma grande festa da escola secundária, só que, por acaso, foi na Casa da Música.
Já tinha bebido três finos para aguentar aquilo de saltos altos, vestido curto e eyeliner preto. Eu, que sou sempre a mais beta dos concertos rock (manias), parecia uma gótica industrial no meio da criançada de pulseiras de berloques e cabelinhos esticadinhos. Bem, acabou. Com as luzes já acesas, lembrei-me do fabuloso concerto dos Pop Dell'Arte que vi, há 10 anos atrás, naquela sala, que é uma das melhores do Porto para os ver. Vou à rua, que ninguém fuma em sítios lavadinhos como este, e eu já deixei de fumar há 4 anos, mas a minha companhia não.
Volto à cena. Três minutos e os X-Wife carregam os primeiros acordes. Entrou bem. Mesmo bem. Aquelas batidas electrónicas entraram-me no corpo com a intensidade que estava a precisar. Fortes e aguitarradas. Uma maravilha. Quanto à banda, toda a gente sabe que sou fã do Rui Maia, um músico honesto que sempre ouviu, compôs e tocou música com a elegância própria de quem se está nas tintas para a elegância. Daqueles casos raros em Portugal que vive para a música porque adora música e não porque quer ser famoso, que não é o mesmo que ser reconhecido, porque isso ele é. O baterista é muito bom, o baixista curtiu mais do que toda a gente que estava lá dentro (Fernando, estamos contigo) e o vocalista esteve à altura. Tocaram músicas de todos os álbuns e actualizaram os sons mais antigos. Não era necessário, mas ficou muito bem. As músicas mais recentes, que tentam acompanhar as tendências actuais do meio musical internacional, são pobres, mas misturadas com as outras, aguentam-se perfeitamente. É aqui que é preciso ter atenção. Os X-Wife, banda portuense de rock electrónico, na tentativa de agradar a gregos e a troianos, não se respeitaram enquanto tal e começaram a tocar todos os acordes que estavam na moda musical do momento e, às tantas, deixou de se perceber o que aquilo era. Quando se é mau, isso é uma vantagem. Quando se é bom, é uma desvantagem muito grande. As bandas têm uma identidade que é preciso respeitar, sob pena de não serem respeitadas. Por isso é que é importante não nos esquecermos de onde viemos e sabermos para onde queremos ir. O público das bandas da moda é o público da moda. Volátil, pastilha elástica. Hoje, ouve isto, amanhã, aquilo. E, na maior parte das vezes, nem está a ouvir nada. Não se pode estar à espera de um público, quando se toca para outro. Andar sempre a trocar de estilo e de amigos musicais para se apanhar o público deles é má estratégia. Um grande músico toca sozinho, para dez ou para 1000 pessoas, da mesma maneira, que é a maneira de quem ama a música, não a fama.
Quatro anos depois do último concerto no Porto, os X-Wife regressaram com bons acordes e puseram o público a mexer. Valeu a pena. Ficamos à espera que valha ainda mais.

Ideias: quem dá menos?

Queria muito participar neste concurso. 2.000€ davam-me jeito para pintar a casa e comprar umas botas novas. Para saber o que é uma dissertação de mestrado “assente num tema de inovação e do empreendedorismo”, fui ao dicionário.

Inovação: Introduzir novidades em. Renovar; inventar; criar.

Empreendedorismo: Atitude de quem, por iniciativa própria, realiza acções ou idealiza novos métodos com o objectivo de desenvolver e dinamizar serviços, produtos ou quaisquer actividades de organização e administração.

“O conteúdo, a forma e o método das dissertações são alguns dos requisitos, a par da originalidade da investigação, a aplicabilidade dos resultados e o potencial de difusão dos resultados a nível nacional e internacional.”

Mas, afinal, é para escrever sobre o quê? Este pessoal quer que eu lhe venda a minha tese mas não faz a mínima ideia do que quer comprar. O título devia ser “Mandem-me as vossas teses que eu pago aquela que tiver a ideia que me vai dar mais dinheiro a ganhar” ou, em linguagem pós-moderno-empreendedora “Façam um forcing para terem ideias que acrescem valor”, ao meu bolso. “As contas são fáceis. Se concorrerem 100 cromos, gasto 2.000€ em 100 ideias, que é o mesmo que dizer 20€ por cada ideia. A isto é que se chama alavancagem! Estes gajos estão tão mal de dinheiro que me oferecem as teses com uma probabilidade mínima de ganharem 2.000€, um estagiozeco de 6 a 9 meses e uma “presença” num evento. Ahahah.”

O método.

Ai agora vocês acham que podem escolher quem é que pensa bem e quem é que pensa mal? Andam todos com os métodos e os modelos na cabeça e depois não conseguem sair disso, não é? Gostava de vos ver a escrever qualquer coisa que não fosse dos Platões ou dos Kants. Ficavam logo sem chão, não era? Como é que alguém consegue pensar sem os ter lido? Arranjem-me umas muletas, por favor. Eu quero lá saber se as minhas ideias são adequadas, se têm método, se são científicas, universais, cor-de-rosa ou amarelas. Já não me faltava ter os padres da consciência, os padres do inconsciente, os padres humanistas e os padres da história, para me dizerem como devo pensar, agora é a epistemologia e mais não sei o quê. Não é o marxismo o tribunal do povo? E eu detesto tribunais! Ide pregar os novos aparelhos de poder no pensamento para outra freguesia. “Mas, assim, nunca serás reconhecida como autora”. Ainda não perceberam que a minha ideia é precisamente a inversa: ignorar todos os que se consideram “autores” e sacudir os modelos de pensamento?  Eu quero é roubar ideias, que não é o mesmo que plagiá-las. Soltá-las da história e do futuro. Tirá-las dos sítios onde estão e pô-las noutros lugares. Nos lugares que me apetecer! E se um dia me apetecesse definir-me, o que seria uma aberração, eu responderia “não um modelo, um método ou um exemplo, mas um pouco de ar puro”. E, agora, não digo a quem roubei isto. Corram para o google. Ou respirem!

Teoria geral do escritor.

Quando o escritor fala, ninguém o quer ouvir. Quando escreve o que disse, toda a gente o quer ler.

I'll give you some war.

The Parkinsons, Nothing to lose.

Come on baby I've got nothing to lose 
Catch my fall stay so close 
Give me some love 
I'll give you some war 
Come on baby I've got nothing to lose
Sit down sit down 
Right next to me 
Catch the fire my baby 
Where can my baby be

Os artistas.

Além dos motivos habituais, os artistas bebem álcool porque não é possível trabalhar intelectualmente mais do que 3 horas por dia, sem recorrer a drogas. E, depois da criação, com o cérebro esgotado, há que fazer passar as horas seguintes. Até que, no dia seguinte, se consiga criar outra vez. Alguns tomam drogas para conseguirem criar mais no mesmo dia. Mas isso não costuma dar muito bom resultado. Escrevem livros enormes, fabulosos, pintam quadros deslumbrantes, compõem músicas memoráveis, e depois matam-se. O abuso diário das drogas para a criação tem essa vantagem e essa desvantagem: ultrapassar os limites humanos e criar um enorme sofrimento nas cabeças deles.
Criar é como tomar anfetaminas, ter um orgasmo, andar de montanha russa. Sente-se uma enorme adrenalina no momento, e desfalecimento de seguida. Extenuados, não há nada que lhes apeteça fazer, a não ser sexo ou beber. Há quem tome drogas, agora para adormecer. Há quem force as sestas. Fazem caminhadas para cansar o corpo, dormem, acordam e voltam a escrever, a pintar, a compor. Também vão para o campo ou para a praia, ver o rio ou o mar, para afastar o tempo. Ir para os ecrãs é que não. Isso cansa o cérebro para nada. É lixo. Energia deitada fora. Se calhar é por isso que agora ninguém cria nada. É preciso parar o cérebro para pensar. Depois, como as histórias, os sons e as cores dos livros, das músicas e das artes plásticas são muito mais interessantes do que as da vida real, especialmente porque foram criadas por pessoas parecidas com eles, que pensam de forma semelhante, acham que as pessoas que não criam são diferentes, estranhas, exóticas. E não pensem que as desprezam. São para analisar, para descobrir. Na maior parte das vezes, até gostam delas porque apreciam a normalidade que não sentem. Fazem-lhes perguntas, ficam a olhar para elas a tentar perceber como funcionam, o que as motiva, como vivem, o que gostam, o que fazem ao domingo à tarde, enquanto eles olham para o tecto à espera que cheguem novamente as horas em que conseguem criar. Por isso é que muitos amigos de artistas os aconselham a não deixar o trabalho das 9h às 17h. Pelo menos, estão entretidos nessas horas. E ganham adubo para a imaginação. Têm é que escolher bem os horários. Não vá oferecer-lhe o tempo da criação.