Faz-me um like, dou-te tudo.

Escrevi, no ano passado, que uma das maiores possibilidades para resistir ao exercício de poder sobre nós é a criação de discursos ocultos. Esses discursos podem ser músicas, artes plásticas, textos, peças de teatro, conversas de café, actividades em associações criadas e geridas por nós, entre outras formas de resistência. São ocultos porque não os podemos dizer ou fazer frente a quem tem autoridade sobre nós. Se o fizéssemos, seriamos despedidos do emprego, teríamos más notas na escola, seriamos reprimidos pela polícia, ou sofreríamos outro tipo de represálias. Assim, os discursos públicos reproduzem o discurso das classes dominantes, não porque os subordinados concordem com ele, mas porque não têm a possibilidade de o dizerem publicamente, tendo de fingir a sua deferência. Claro que há quem afirme o que pensa publicamente, mas ou é afastado delicadamente, tomado como louco ou tem de aprender a viver de uma horta e da criação de galinhas.

Os discursos ocultos têm três funções essenciais. Por um lado, garantem que não ficamos iguais aos que nos dominam. Uma grande parte da resistência ao discurso dominante é apenas não o reproduzir. Só por isso é, já em si, transformador. Por outro lado, garantem a coesão dos grupos dos submetidos, impedindo que se deslumbrem com o outro lado. Sendo valorizados aqui, nas associações ou pela arte que criam, sentem menos necessidade de procurar valorização social através do dinheiro, por exemplo. E por último, esses discursos são o adubo para a acção política, que, em determinadas condições, são trazidos para o espaço público, dando origem à inversão da ordem dominante. Ou seja, é este discurso, fermentado em privado, que é gritado em praça pública, nos dias das revoluções.

E é precisamente aqui que nasce a profunda crise da liberdade da sociedade actual. Antigamente, o Estado e as empresas não tinham acesso aos nossos tempos livres. O controlo era exercido enquanto trabalhávamos, nos hospitais, nas escolas, nas prisões, entre outros locais fechados. Desta forma, o discurso oculto era criado nos tempos livres, em espaços protegidos, onde quem exercia o poder sobre nós não nos ouvia.

Hoje, através da cultura de entretenimento e da tecnologia, as empresas também dominam os nossos espaços privados. Se dantes, não tinham acesso ao nosso tempo livre, agora, estão connosco em toda a nossa vida, através do Facebook, do Google, e dos produtos culturais, como filmes, livros, programas de televisão, videojogos, etc. As tais “indústrias criativas”, que nos entretêm no tempo que nos resta. Com isto, ganham três coisas: o lucro da venda desses produtos e serviços, o lucro das indústrias associadas (roupa, cosmética, eventos, etc.), e garantem que não andamos a ler, a ver ou a tocar coisas que não lhes dão lucro e até podem ser adubo para desobediências. Ou seja, conseguem controlar-nos e lucrar ininterruptamente. É esta a grande novidade do regime neoliberal, que se crê mais livre, mas que é ainda mais opressor do que o anterior regime liberal: não permite que surja resistência alguma frente ao sistema.

E a pergunta impõe-se: porque oferecemos tudo a estas empresas? A troco de quê oferecemos a nossa liberdade? De um "like".

Eles conhecem-nos bem. Chegam a fazer estudos neuronais para saberem como nos comportamos inconscientemente. O difícil não foi perceber os nossos instintos mas descobrir uma forma de os satisfazerem para nos tornar dependentes. Para nos dominar, utilizam técnicas de sedução, que é feita através da oferta de recompensas imediatas. O "like" do Facebook, ou o coração do Instagram, são exemplos disso.

Satisfazem-nos ao ponto de, para os obtermos, oferecermos cada vez mais informação sobre nós. Quanto mais dou, mais gostos tenho. Não há “não gosto”. A satisfação é instantânea. E a recompensa nunca é negativa. Assim, a troco de um "like", mostramos os nossos filhos, a nossa casa, o nosso corpo, toda a nossa vida. Vivemos sedentos de aprovação. E quem detém o poder sabe melhor isso do que ninguém. Toda a gente sabe que uma das primeiras técnicas de manipulação é conhecer o dominado melhor do que ele se conhece. Oferece-se o que ele deseja para que ele depois ofereça o que nós queremos. Neste caso, oferecem recompensas instantâneas, "likes", a troco de informações e dados, que depois vendem.

Eu sei que parece estranho oferecermos tanto por tão pouco. Mas que ninguém pense que não cai nesta história. Porque temos aqui uma coisa que é verdade. Não há ninguém que não procure reconhecimento. Toda a gente o procura. A única coisa que podemos escolher é como o obter, e o que oferecermos em troca.

Condescendência de classe Ou Ricos ou iluminados.

Caros intelectuais de Facebook, visionários deste mundo, não se esqueçam que tudo o que vocês publicam foi tocado, pintado, escrito e pensado pelos autores dessas coisas e não por vocês, está bem? É que andar a dizer que o pessoal que vai para a praia, para o campo, que faz amor ou bolos para o lanche é uma cambada de tapados que não consegue ver a complexidade deste mundo, enquanto vocês estão colados ao ecrã a partilhar as coisas que essa gente tocou, pintou, escreveu e pensou na praia, no campo, a fazer amor ou bolos, não é apenas condescendente. É um bocadinho imbecil.

Como conquistar votos ou vender produtos no século XXI.


Hoje, é aqui.

Cada época tem as suas formas próprias de propaganda. Até agora, a estratégia era encontrar o que havia de comum em todas as pessoas e criar uma mensagem que encaixasse na maioria. Reduzia-se o nosso candidato aos seus melhores atributos e o seu oponente ao pior. Depois, martelava-se esta mensagem na imprensa, na rádio, em outdoors, eventos, mas especialmente na televisão.

Hoje, a estratégia é outra. A migração da televisão para a internet, fenómeno que se tem verificado a uma velocidade furiosa, impõe técnicas radicalmente diferentes. Na internet, o objectivo é encontrar os grupos específicos que queremos persuadir. Isto é o mesmo que dizer segmentar a sociedade por nichos, que podem ser divididos geograficamente (Dirijo-me a pessoas do Porto, de Lisboa, de todo o país?), demograficamente (Homens? Mulheres? Com que idades?) e, agora é que tudo muda, por palavras que procuram nos motores de busca. Isto significa que compramos palavras-chave ao Google e, sempre que alguém as procura no motor de busca, ou lê um texto online que contenha esses termos, o anúncio aparece no ecrã. Para isto funcionar, temos que analisar constantemente as palavras-chave mais procuradas e criar anúncios o mais persuasivos e personalizados possível para cada nicho de mercado eleitoral, ou comercial. Estado e mercado, cidadão e consumidor, comprar e votar, nunca foram tão parecidos como hoje.

Por exemplo, suponhamos que eu sou a gestora de comunicação de um candidato à Câmara Municipal do Porto, e tenho um programa eleitoral que defende o investimento no sector cultural. Primeiro, faço uma pesquisa para saber quais são as palavras-chave que as pessoas que trabalham ou têm interesse em cultura costumam procurar. De seguida, escolho as idades, género, localização, etc. Posso comprar palavras como “financiamento cultural Porto” e, sempre que elas forem procuradas no Google, ou a pessoa esteja a ler um texto online que contenha esses termos (seja uma notícia, conteúdo de um site institucional, um texto de um blogue), o anúncio do meu candidato aparece-lhe no ecrã. Se a pessoa clicar no anúncio, será direcionada para uma peça criativa que a minha equipa fez. Neste caso, poderia ser um vídeo com figuras públicas do sector cultural portuense (actrizes, escritores, músicos) a apoiar o meu candidato, já que o programa dele promete aumentar o financiamento dos projectos culturais da cidade.

Para além das palavras, também posso encontrar o segmento de pessoas que pretendo persuadir através do Facebook. Ou selecionando o intervalo de idades, género, localização, como no Google, ou escolhendo os grupos do Facebook a alcançar. Por exemplo, se o meu candidato tem um programa eleitoral com medidas ecológicas, poderei comprar um anúncio, que aparecerá no feed de notícias das pessoas que pertençam a grupos relacionados com ecologia. E, ao clicar no anúncio, abrir-se-á uma curta-metragem sobre as alterações climáticas ou um site animado que mostra como ficará a cidade após a implementação da medidas do programa do meu candidato.

Para que tudo isto funcione, seja para ganhar votos, seja para vender produtos, é preciso comprar constantemente dados actualizados. E para que a Google e o Facebook os possam vender aos candidatos, aos partidos, ao governo, ou às empresas, hoje, tudo o que fazemos online fica registado. Através dos computadores, tablets e dos smartphones, estas empresas registam todos os nossos movimentos, localizações, gostos, hábitos e todas as palavras que procuramos nos motores de busca.

O pernicioso é que o acesso a estes dados permite-lhes criar uma imagem de 360º da nossa pessoa. A nossa vida digital dá-lhes uma representação ainda mais nítida do que a imagem que fazemos de nós próprios, já que há milhares de acções que fazemos sem nos apercebermos delas. Assim, é fácil preverem o que vamos fazer de seguida. Nós esquecemo-nos frequentemente do que fizemos mas eles têm todos os nossos padrões de comportamento registados.

Nas anteriores eleições americanas, a compra destes dados foi o ovo de Colombo. Através de algoritmos inteligentes, que cruzam os dados e permitem fazer prognósticos sobre o comportamento dos eleitores, muitos candidatos conseguiram ganhar as eleições.

Há vários problemas nestas novas formas de propaganda. Os antigos continuam: prometer continua a não significar cumprir; e surgem novos: seduzidos por estes anúncios hiperpersonalizados, somos induzidos a comprar ou a votar inconscientemente. Basta pensarmos que, se virmos um filme cujas personagens comem doces, é mais provável que nos apeteça comer doces mal saiamos do cinema. E se, antes, apenas podiam seduzir-nos a determinadas horas e em locais específicos, agora podem fazê-lo 24 sobre 24 horas, através dos aparelhos que até para a cama levamos.

Assim, os dados que lhes oferecemos constante, voluntária, e até efusivamente, permitem-lhes fazer prognósticos sobre o nosso comportamento e condicionar-nos em níveis subconscientes.

Claro que o tempo e o dinheiro que se gasta nisto poderia ser usado para resolver os problemas efectivos das pessoas. E, para saber o que elas querem e precisam, talvez fosse mais interessante perguntares-lhes directamente, em vez de andar a descortinar-lhes a vida privada. Mais do que se aprimorarem na arte da sedução, deixarem-nas participar nas decisões políticas sobre a sua própria vida.

A via curta do cão III.

"O actual sujeito narcísico do rendimento visa, sobretudo, o sucesso. O sucesso veicula uma confirmação de si através do outro. Pois bem, o outro, despojado da sua alteridade, vê-se degradado para a condição de espelho que confirma no seu eu."

Byung-Chul Han, in A Agonia de Eros, 2014.

A via curta do cão II.

"Se fosse possível conhecer, possuir ou captar o outro, este deixaria de o ser.

Possuir, conhecer, captar: sinónimos de poder."

Levinas, in Die Zeit und der Andere, 1984.

A via curta do cão I.

No outro dia, disseram-me que não me percebiam. Que vivo sozinha e que pareço não querer nada nem ninguém. Que não sabiam o que eu queria das relações.

É simples, disse. Olha para o meu cão. Ele, todos os dias, está horas sozinho e horas acompanhado. Nenhum cão decide sobre a vida e o corpo do outro. Um cão não diz ao outro que ele deve andar mais depressa ou mais devagar, não pede para irem buscar comida por ele, não manda o outro ladrar mais alto ou mais baixo. Não acha que o outro cão devia ser mais parecido com ele ou mais diferente, que ficaria melhor se mudasse a cor do pêlo, ou que era mais esperto se fizesse passeios mais curtos ou mais longos. O cão apenas acasala, às vezes rosna, e passeia com o outro cão. Apenas aprecia a sua companhia.

Eu tenho um pobre III.


Lista dos vencedores do concurso de pobreza,
 Diário de Notícias, 2 de Fevereiro de 1908.
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Livro da 3ª Classe do Estado Novo, 1951.
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Discurso de Isabel Jonet, presidente do Banco Alimentar Contra a Fome,
SIC, 2012.
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"A EDP apoia iniciativas promovidas pela comunidade onde se insere, promovendo a realização de projectos que, de outra forma, não teriam apoio financeiro, e fomentando o desenvolvimento económico, social e cultural. Desta forma, procura manter e reforçar uma longa tradição assente em critérios de transparência e cooperação.

No apoio aos projectos são considerados critérios que tenham em conta:

O Código de Ética, os Princípios de Desenvolvimento Sustentável e a Política de Stakeholders do Grupo EDP;
O enquadramento na Politica de Investimento Social da EDP Produção
A credibilidade das organizações e a sua contribuição para, pelo menos, uma das dimensões do desenvolvimento sustentável;
O valor e a relevância dos projectos para as comunidades;
As relações económicas, institucionais ou sociais com o Grupo EDP."

Texto do site da EDP, na qual explicam os critérios elegíveis para se obter as oferendas de dinheiro do departamento de responsabilidade social, 2015.
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Eu tenho um pobre II.

(Mata-Ratos, Eu tenho um pobre)

Eu tenho um pobre
Esfarrapado e sujo
Sou um cidadão honrado
Mereço ser venerado

IIII.

Eu tenho um pobre I.

Solidariedade é auxiliar o outro para que ele ande sozinho, depois da dificuldade por que passa. “Não quero nada em troca. Hoje, preciso eu, amanhã precisas tu. Somos todos iguais.”

Caridade é ajudar o outro de forma a que ele continue a depender de mim. “Quero honras ou exercer autoridade sobre ti. Tu és, e quero que continues a ser, inferior a mim. E eu só te estou a ajudar porque sou muito boa pessoa.”

"Na minha família os animais domésticos não eram cães nem gatos nem pássaros; na minha família os animais domésticos eram pobres. Cada uma das minhas tias tinha o seu pobre, pessoal e intransmissível, que vinha a casa dos meus avós uma vez por semana buscar, com um sorriso agradecido, a ração de roupa e comida." Crónica de António Lobo Antunes, Visão, 2013.


 IIIII.

Rockeira com brinco de pérola.


Sobre o D´Bandada deste fim-de-semana, bom concerto dos Lola Lola no Cave 45, o bar de rock do Porto. Estava cheio de rockeiros de todos os dias, rockeiros de fim-de-semana, e rockeiros que só o são no D´Bandada. Tiveram a sorte de poderem ver bom Rock´n´Roll portuense, inspirado nos anos 60, cantado pela Carla Capela e tocado pelo Tiago Gil (guitarra), Miguel Lourenço (baixo), Hélder Coelho (bateria) e João Azeredo (no saxofone), sem pagar. As músicas são deliciosas e puseram-nos a dançar desenfreadamente.

O primeiro single, em vinil, lançado este ano, é composto por “Money in the Can” (Lado A, que dá título ao EP),e “Follow Me to the Sea” (Lado B). Foi editado pela Sleasy Records e e pode ser adquirido nos concertos da banda ou na Louie Louie do Porto e de Lisboa.

Bem-vindos à hipsterlândia.

Olá, eu sou um hipster. Passo o dia a pensar na roupa vintage que vou vestir, quais os óculos que vou comprar e se vou deixar crescer a barba mais dois ou três centímetros. Adoro marcas de roupa alternativas, gadgets alternativos, revistas alternativas e músicas muitíssimo alternativas. Gosto de citar coisas muito cultas ou diferentes dos outros mas o meu objectivo primordial é inebriar a cidade com glamour. Vou a sítios que chamam tapas ao pão e ao chouriço, acho um máximo comer sandes de pernil, como os pobres, mas em ambientes mais requintados, como o festival dos sons primaveris, e como gelados trendy, feitos com bolachas industriais oreo, na gelataria “artesanal” da baixa. Tenho a noção que o meu sentido estético é apuradíssimo. Nunca criei arte mas tenho uma sensibilidade artística fora do normal. No fundo, tenho uma cultura geral superior aos seres humanos comuns. Sou uma pessoa diferente. Só ainda não percebi que a cidade está cheiinha de pessoas exactamente iguais a mim.

O cão.

Ontem, que tive o dia livre porque fiz 31 anos, fui passear com o meu cão. Como não deixa que eu lhe ponha trela, entrou no jardim de quase todas as casas pelas quais passamos, enquanto os vizinhos olhavam para ele com um ar extremamente reprovador. Um deles murmurou uma catrefada de ameaças e outro atirou-lhe um pau ao lombo. Tentei explicar-lhe que aquilo era propriedade privada mas ele não percebeu. É tão irracional.

As novas luzes da academia.

Os acérrimos defensores dos métodos quantitativos na investigação académica acreditam que a estatística, e a transformação de tudo em dados, libertam o conhecimento dos mitos, do arbítrio subjectivo e do mal da ideologia. Para estes académicos, o conhecimento será tão mais “científico” quanto mais for baseado e movido por números e dados “concretos”. A própria teoria é, muitas vezes, acusada de ser uma ideologia.

O problema é que acreditar que tudo o que é conhecimento pode e deve ser medido é em si mesmo uma ideologia.

Os dados e os números são desprovidos de sentido.

Não são narrativos, mas aditivos.

Mensurar e quantificar não é o mesmo que compreender.

Ter muitos dados, acumular muita informação sobre uma determinada coisa, não garante o conhecimento acerca dela. Pode ser até pernicioso, quando nos dá uma falsa sensação de clareza.

A teoria é uma forma de pensar e compreender alguma coisa.

Medir não é questionar.

Sobre o declínio do jornalismo político.

A cobertura política tem sido criticada por reforçar aquilo que tem sido conhecido como “a espiral do cinismo”: pelo seu estilo de jornalismo negativo e pela sua abordagem cínica, os jornalistas têm sido acusados de fazerem decrescer os níveis de confiança no governo, da mesma forma que aumentam o cinismo político dos leitores e espectadores. Estes críticos afirmam que os jornalistas espalham uma visão cínica da política e que a sua relação com os políticos é caracterizada pela desconfiança e pelo hiper-adversalismo.
Habitualmente, o primeiro passo para estudar a interacção entre os jornalistas e os políticos é analisar as relações entrelaçadas entre os média e a política. Mas talvez seja mais interessante começarmos a dar ênfase a factores que não seguem a tradição política ou a abordagem económicas. Vários estudos encontraram grandes diferenças entre os jornalistas do norte e do sul da Europa, por exemplo. Os do sul são habitualmente mais cínicos do que os jornalistas do norte. Outros apontam a pressão política como um dos principais factores para o aumento do cinismo no jornalismo político, o que parece fazer mais sentido. Assim, o jornalista estará desacreditado da política na razão directa da pressão que os políticos exercem sobre o seu trabalho. Para além disso, será interessante pensarmos nas potenciais consequências negativas da profissionalização da sua relação com os jornalistas políticos, como com os spin doctors, por exemplo, e nas disparidades culturais e demográficas, que podem influenciar a forma como os jornalistas desempenham as suas funções. Por outro lado, podemos ainda pensar no declínio do consumo de notícias deste foro como produto de uma descrença no sistema democrático. Não será o declínio do jornalismo político um sintoma do falhanço da democracia na supressão das necessidades básicas dos cidadãos? Se eu acho que os políticos não resolvem os meus problemas, por que haverei de ler notícias sobre o que eles andam a fazer? 
Urge, pois, compreender o jornalismo político de uma perspectiva holística, cujos comportamentos brotam de um cruzamento de factores que não se restringem apenas às esferas políticas e mediáticas, que é o mesmo que dizer que devemos desconfiar dos que acusam os jornalistas de serem a razão do aumento do cinismo no exercício da sua profissão, e da consequente demissão democrática dos cidadãos. Para compreender o declínio do jornalismo político, talvez seja mais interessante estudar a forma como as populações vivem, e a estrutura da participação política delas, do que andar a apanhar o mexilhão.

Como manda a sapatilha.

A história do marketing 3.0, o último grito do mundo empresarial, começa assim:

Hoje, testemunhamos o surgimento do marketing 3.0, ou a era voltada para os valores. Em vez de tratar as pessoas simplesmente como consumidoras, os profissionais de marketing tratam-nas como seres humanos plenos: com mente, coração e espírito.

Rebobinemos.

No início, era a sapatilha. As pessoas tinham uma necessidade funcional: precisavam de calçar-se. Para isso, começamos a vender sapatilhas ao maior número de pessoas possível. Para vendermos muitas sapatilhas, criamos um modelo igual para toda a gente. A nossa linha de produção era estandardizada, para obtermos economias de escala. Quanto mais sapatilhas produzíamos, menor era o custo de produzir cada uma. O objectivo era reduzir os custos humanos e materiais e aumentar a rotação. Desta forma, conseguíamos vendê-las a preços baixos. Era assim que ganhávamos dinheiro, a vender muitas sapatilhas iguais.

Depois, apercebemo-nos que toda a gente já tinha um par de sapatilhas. Era preciso que as mesmas pessoas comprassem mais sapatilhas. Então, pensámos: para além de precisarem de proteger os pés, que outras necessidades têm as pessoas? De amor e sentimento de pertença. Então, convencemo-las que, ao comprarem as nossas sapatilhas, conseguiriam satisfazer essas necessidades emocionais. Foi complicado descobrir uma estratégica, mas lá conseguimos. Segmentamos os clientes e criamos marcas. Diferentes sentimentos de pertença, diferentes marcas, canais de distribuição distintos e formas de comunicação adaptadas. Um rico não quer sentir que pertence ao segmento dos pobres, por exemplo. Criamos marcas para sapatilhas de ricos, marcas para sapatilhas de pobres, marcas de sapatilhas para citadinos, marcas de sapatilhas para surfistas, e por aí fora. Foi fantástico. Fartámo-nos de vender sapatilhas.

Agora, apercebemo-nos de uma coisa: toda a gente já tem mais do que três pares de sapatilhas. Ainda por cima, estragamos um bocado o meio ambiente a fabricar tantas sapatilhas. Isso sem contar com o facto do pessoal aqui estar falido. A estratégia de lhes oferecermos crédito barato, para continuarem a ter a oportunidade de comprar as nossas sapatilhas, já não funciona. Quando fomos produzir as sapatilhas para o estrangeiro (lá, os custos de produção são mesmo muito mais baratos!), o pessoal daqui ficou sem emprego, pelo que já nem a crédito eles conseguem pagá-las. Isto até parece antigamente. Imagina que, gastaram tanto dinheiro, em não sei o quê, que agora nem dinheiro têm para comprar um par de sapatilhas!

Andámos dias a fio sem vermos a luz ao fundo do túnel. Chegámos até a pensar em fabricar sapatilhas normais, e vivermos apenas com esse dinheiro. Mas tivemos uma epifania. Decidimos ajudar as pessoas na recuperação do meio ambiente, da cultura e da humanidade. E a encontrar um sentido de vida com estas causas. Para isso, criamos um departamento de responsabilidade social, começamos a patrocinar eventos culturais e a fazer sapatilhas com algodão não tóxico. Assim, sempre que alguém comprar as nossas sapatilhas, sabe que está a ajudar os desfavorecidos, a cultura nacional e o meio ambiente.

O caminho não foi fácil, mas continuamos a conseguir dar a oportunidade às pessoas de comprarem as nossas sapatilhas. Agora, não só protegemos os pés das pessoas, como oferecermos-lhes emoções e uma razão de viver. Conseguimos realizá-las espiritualmente, respondendo de uma forma concreta e eficaz aos problemas da sociedade. Mente, coração e espírito. Tudo apenas com a compra de mais um par de sapatilhas.

Adoro o que faço.

Liberdade, tecnologia e trabalho.

No capitalismo do século XX, produziam-se sobretudo objectos físicos. Para optimizar a produção, o corpo do trabalhador deveria adaptar-se à máquina. Para se produzir mais em menos tempo, e pelo menor custo possível, o trabalhador deveria executar a mesma tarefa, sucessivamente, até ao ponto de, tal como uma máquina, fazê-lo de forma automatizada.

No capitalismo do século XXI, produzem-se sobretudo objectos não-físicos, como informações e programas. O órgão central da nova produção é o cérebro, que deve ser rentabilizado para a obtenção do lucro. Como não se obtém “criatividade” automatizando o cérebro, a optimização das funções cerebrais é feita através de medicamentos ou recorrendo-se a técnicas de lavagem cerebral, como o coaching, por exemplo. As técnicas de evangelização, com vista à submissão a uma ideia, são comuns às de várias religiões.

E;

Se dantes, como Chaplin, nos Tempos Modernos, ocupávamos o corpo, e não a mente, para produzir um determinado objecto, hoje, ocupamos o cérebro, e não o corpo, na linha de produção.

Por isso é que esta nova onda dos spinnings, dos runnings, e de outras formas de fitness e sexness, não são apenas uma tendência estética. O corpo desocupado é o novo recurso a ser explorado economicamente.

Liberdade e tecnologia.

Século XX.

O poder é normativo. Obriga-nos a cumprir regras. O objectivo é disciplinar o sujeito, torná-lo dócil e obediente. A imposição é visível porque implica coacções. “Se não cumprires, bato-te.”, “Se não cumprires, vais preso.”, por exemplo. Ainda que tenha consequências psicológicas, o poder disciplinar obtém um domínio mais físico do que psicológico. Como o sujeito consegue identificar o impositor, o poder tem um acesso limitado à psique.

Século XXI.

O poder é psicológico. Através dos dados que oferecemos ao Estado e às empresas, através do Google e do Facebook, por exemplo, o poder consegue construir não só o mapa psicológico de um determinado indivíduo, como também criar um mapa psicológico da “mente colectiva”. Utilizando os nossos dados, quem detém o poder descobre os nossos anseios e desejos ocultos e apodera-se desse conhecimento para controlar e vender. Agora, já não é necessário obrigar-nos a cumprir regras, basta seduzir-nos, penetrando nas camadas mais profundas da psique. Para nos dominar, continuam a utilizar técnicas disciplinares, mas sobretudo técnicas de manipulação. Seduzem-nos para nos tornar dependentes. A sedução é feita através da oferta de recompensas instantâneas. O “gosto”, do Facebook, é um exemplo disso. Satisfaz-nos ao ponto de, para o obtermos, oferecermos cada vez mais informação sobre nós. Quanto mais me exponho, mais gostos tenho. Não há “não gosto”. A satisfação é momentânea. E a recompensa nunca é negativa.

Sísifo.



The Clash, The Magnificent Seven.

So get back to work an' sweat some more
The sun will sink an' we'll get out the door

Sísifo II.

Problema diário: conseguir tempo para ler e escrever.

Acordar às 6h. Ler e escrever das 6h às 7h. Tomar o pequeno-almoço e cozinhar das 7h às 8h. Arranjar-me das 8h às 9h. Sair de casa, para trabalhar.

Sair do trabalho às 18h. Das 18h às 20h, fazer o que me apetece, que é o mesmo que dizer ir para a esplanada ou para a cafetaria. Podia cozinhar agora, mas não gosto de jantar sozinha. Faço-o quando convido alguém. A esta hora, com o cansaço, também já não consigo ler. Fico a conversar, a olhar para o mar ou para a lareira. Ir para casa às 20h. Chegar a casa às 21h. Arranjar-me, folhear, partilhar, e dormir.

O que acontece na maioria das vezes: acordo às 7h e não leio.

O que é que mais gosto de fazer: ler e escrever.

O que é que eu faço: trabalhar e dormir.

A pedra cai todos os dias. E eu carrego-a até ao cimo da montanha. No dia seguinte, a pedra caiu outra vez.

Afinal, Camus, só mesmo na imaginação conseguimos ver Sísifo feliz.

E depois dizem que tenho que ser criativa, tolerante e empreendedora. Eu empreendo imenso. E por pouco dinheiro.

Sísifo I.

Os deuses tinham condenado Sísifo a rolar um rochedo incessantemente até o cimo de uma montanha, de onde a pedra caía de novo por seu próprio peso. Eles tinham pensado, com as suas razões, que não existe punição mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança.

Toda a alegria silenciosa de Sísifo está aí. O seu destino pertence-lhe. O seu rochedo é a sua questão. Da mesma forma o homem absurdo, quando contempla o seu tormento, faz calar todos os ídolos (…). De resto, sabe que é o dono dos seus dias.


Esse universo enfim sem dono não lhe parece estéril nem fútil. Cada grão dessa pedra, cada estilhaço mineral dessa montanha cheia de noite, forma por si só um mundo. A própria luta para atingir os píncaros basta para encher um coração de homem. É preciso imaginar Sísifo feliz.


Camus, em Mito de Sísifo.

Comunicação e liberdade.

Antigamente, o poder censurava a informação. O transgressor era aquele que dizia o que pensava, ainda que isso implicasse consequências negativas para ele. Liberdade era sinónimo de expressão, liberdade de expressão.

Na era da comunicação e da vigilância totais, o poder obriga-nos à expressão. Hoje, o transgressor é aquele que se recusa a comunicar, o desligado. Liberdade é sinónimo de desconexão, liberdade de desaparecimento.

Cabelos de praia.

Ele há cremes para o cabelo que criam um “efeito de praia”. Ele há cremes de corpo autobronzeadores ou com cor que dão um “bronzeado de praia”. Ele há bases e pós de rosto dourados para ficares com “ar de praia”. Ele há cabeleireiros que fazem “mechas e ondulados com efeito pós-praia”.

Fazes assim: trabalhas dia e noite para me comprares esses produtos.

Tudo, menos ir para a praia.

Capital e liberdade.

A exploração da culpa ou Agora, Deus também é o capital.

Dantes, devíamos sempre a Deus.

Agora, devemos sempre ao capital.

Endividados, não podemos agir.

A dívida elimina a liberdade.

O capital é a nova transcendência.

Somos outra vez devedores em falta.

Cultura e liberdade I.

O marketing cultural diz que é benéfico para a sociedade porque:

1. A cultura, ao ser patrocinada tanto por entidades privadas como por empresas públicas, vê o seu financiamento ser aumentado.

2. Com mais dinheiro, há mais projectos culturais.

3. Havendo mais projectos culturais, mais pessoas podem consumir cultura.

4. Dá-se a democratização cultural.

É uma história interessante, mas:

Antigamente, o Estado e as empresas não tinham acesso aos nossos tempos livres. O controlo era exercido enquanto trabalhávamos, nos hospitais, nas prisões, entre outros locais fechados.

Hoje, através da “cultura” e da tecnologia, as empresas também dominam os nossos espaços privados.

Se dantes, conseguiam vender-nos pouca coisa no nosso tempo livre, agora, vendem-nos publicidade virtual 24 horas sobre 24 horas, no Facebook, por exemplo, e produtos culturais (filmes, livros, peças de teatro, exposições, etc.) para nos entreterem no tempo que sobra.

Com isto, ganham duas coisas:

1. O lucro da venda desses produtos e serviços.

2. O lucro das indústrias associadas (roupas, cosmética, eventos, etc.).

E garantem que não andamos a ler, a ver ou a tocar coisas que não lhes dão lucro e até podem ser o adubo para desobediências.

Ou seja, conseguem controlar-nos e lucrar ininterruptamente. E, para o fazerem, utilizam técnicas de sedução, que são bem mais eficazes do que as coacções.

Crime e feminismo.

"O feminismo já não faz sentido nos dias de hoje. As leis são iguais tanto para os homens como para as mulheres."

O crime já não faz sentido nos dias de hoje. As leis não permitem o crime.

Lei fundamental portuguesa:

Todos os cidadãos gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres consignados na Constituição.

Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.

Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública.

A integridade moral e física das pessoas é inviolável.

A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação.

Todos têm direito à liberdade e à segurança.

ah ah ah

Dinheiro é poder III.

Para finalizar esta carta, aqui te deixo uma máxima que li hoje, e que também ela foi colhida num jardim alheio: “uma verdadeira riqueza é a pobreza conforme a lei natural.” (Epicuro) Sabes quais os limites que a lei natural nos impõe? Não passar fome, nem sede, nem dor. Para evitar a fome e a sede não é necessário frequentar a casa dos grandes senhores, nem suportar o seu ar carrancudo, ou a sua ofensiva bondade (…).

Sermos donos de nós mesmos é um bem inestimável!

À custa de muito esforço poderemos ter uma grande propriedade: antigamente, contudo, éramos proprietários de tudo! Sem cultura, a própria terra era mais fértil, e bastava para as necessidades de gente que não a saqueava.

Esses homens protegiam-se do sol apenas na sombra densa das florestas, viviam sob humildes tectos de colmo como único abrigo contra as inclemências do inverno, mas podiam ver as suas noites passarem sem angústia. Nós, no meio da nossa púrpura, dormimos agitados, sujeitos ao violento aguilhão da ansiedade; eles, dormindo na terra dura, que sono tranquilo gozavam!

O filósofo que, vendo um garoto a beber água pelas mãos em concha, partiu no mesmo instante o copo que tirara da sacola, e a si próprio se repreendeu, dizendo; “Oh! Como sou estúpido em andar carregado de objectos inúteis!”

A sabedoria põe a riqueza à tua mão: ao mostrar que é supérflua, está como que a oferecer-ta.


Séneca, em Cartas a Lucílio, ano 65 d.c., Roma.

Dinheiro é poder II.


(Jorge Palma, A gente vai continuar)

"Somos todos escravos do que precisamos.
Reduz as necessidades se queres passar bem."

Dinheiro é poder I.

Eu tenho 20€, tenho o poder de os gastar em 20 coisas. Quando as compro, deixo de ter a possibilidade de as comprar.

Somos mais poderosos quanto mais possibilidades temos.

Eu posso.

Tu podes.

Pobre não é aquele que tem pouco.

Pobre é aquele que quer mas não pode.

Para ser rico basta não querer.

Poder é não precisar.

Amor: sexo e metafísica.

Toda a gente já sentiu aquela chicotada no cérebro. No momento em que olhamos para ele ou para ela, o queixo cai-nos, os olhos saltam-nos das órbitas, a realidade suspende-se. Começamos a ver tudo de forma diferente. Sideramos. Eis o amor, a experiência natural mais pungente, hipnótica e extasiante do ser humano.

Inflamados, começamos a imaginar o outro e apaixonamo-nos pelo que é perfeito nele. Não é preciso que ele seja perfeito em tudo, mas tem que encarnar alguma forma de perfeição. A nossa personagem tem que ser superior aos outros, ultrapassar o resto da humanidade em alguma coisa. Apaixonamo-nos pela nossa imaginação. Por isso é que no "Banquete", de Platão, Sócrates diz que o “erro surge por se considerar que o amor é aquilo que se ama e não aquilo que ama”. Não cometer o erro significará, então, dizermos que o amor tem mais a ver com a forma como amamos do que com a pessoa que amamos. Ou, como diria Barthes, “é o amor que o sujeito ama, não o objecto”. Mas, se não é a pessoa que amamos mas o nosso estado de enamoramento, porque razão desejo aquela pessoa e não outra? Amamos quem queríamos ser, quem nos é útil ou quem nos satisfaz.

É por este motivo que há quem considere que toda esta história é uma grande facécia, que o amor é uma invenção bizarra que tem por objectivo sentimentalizar o instinto sexual. Ou seja, tal como os outros animais, o que procuramos é sempre sexo. E esse instinto cega-nos até conseguirmos satisfazer-nos . Mas, mesmo que o amor não seja mais do que uma ilusão, os sentimentos que desperta são reais. E, se ninguém deixa de dormir, comer e até se suicida por deixar de ter sexo, a que se deve a imensidão do desgosto amoroso?

Quando termina um amor, não é a pessoa que se perde. É o sentido da nossa existência. Claro que podíamos encontrá-lo de várias formas. Na contemplação, passando os dias na natureza, a reflectir, a aprofundar o pensamento. Na acção, prosseguindo uma causa, como a igualdade, a justiça ou a luta contra o racismo. Ou na diversão, na boémia, na transgressão. Mas não há nenhum que empilhe todos os sentidos da vida como a paixão. Ela é uma ideia, uma causa, que nos impele a contemplar, agir, cooperar, arder e andar à deriva. Absorve todos os sentidos, a vida toda. Deve ser por isso que o amor é o objectivo último de quase todas as aspirações humanas. E será também por isso que dá origem aos maiores sofrimentos. A violência da paixão é tal que serve de consolo para a maior dor da consciência humana: deixamos até de nos lembrar que um dia vamos morrer. Achamos que vamos ser felizes para sempre. Ou, como diria Cesare Pavese, nos seus diários, "Ninguém se mata pelo amor de uma mulher. Matamo-nos porque um amor, não importa qual, nos revela a nós mesmos na nossa nudez, na nossa miséria, no nosso estado inerme, no nosso nada”.

E o que fazemos, então, quando a paixão acaba, seja porque deixamos de a sentir, seja porque o outro se foi embora?Como evitamos o sofrimento do amor?

Há quem preconize uma entrega desenfreada às relações sexuais para evitar os perigos de uma paixão única, e há quem apregoe a domesticação das pulsões carnais para nos defendermos das atrocidades do amor. Mas, seja para não corrermos o risco de substituirmos uma dependência emocional por uma dependência sexual, seja para não deixarmos de viver a experiência mais singular da vida humana, alcancemos a autonomia individual, a auto-suficiência emocional. Embriaguemo-nos também com arte, com ideias ou com festas. Viver ao contrário da natureza é remar contra a maré, mas procuremos a felicidade não só na busca do prazer também na lucidez, na independência relativamente a falsas necessidades e a preconceitos que criam frustrações. Em união ou em celibato, não expectemos a satisfação de todas as nossas necessidades no outro. Há pessoas que vivem acompanhadas e sentem uma profunda solidão e há celibatários que nunca se sentem sozinhos. Desprezemos os discursos falaciosos das servidões no amor. É que no início, durante e no fim, vestidos ou despidos, o inferno não é o outro, somos sempre nós.

Da banalidade.

Arte contemporânea.

Até uma criança de 3 anos fazia isto.

Uma criança de 3 anos nunca pensaria nisto.

Posso pintar um quadro abstracto inconscientemente.

Posso pintar um quadro abstracto como recusa à normatividade na arte.

Duchamp virou o urinol ao contrário.

Desconstruir é construir de uma forma diferente.

Não interessa se eu consigo fazer isto. O que interessa é que eu nunca pensei nisto.

A arte não é a técnica, é a ideia.

Metafísica do amor.

Para além da persecução do instinto sexual, a paixão é:

Suspensão da realidade e imaginação.

O sujeito apaixonado suspende-se da realidade.

“Mundo siderado ou A-realidade: Sentimento de ausência, fuga da realidade experimentada pelo sujeito apaixonado face ao mundo.” Barthes.

Tudo o que rodeia o sujeito apaixonado altera o seu valor.

“O apaixonado separa-se então do mundo, irrealiza-o”.

“Perco também o real, mas nenhuma substituição imaginária vem compensar essa perda: (…) já não estou no Imaginário. Tudo está congelado, petrificado, imutável, isto é, insubstituível: o imaginário.” Barthes.

“Tudo não é mais do que ilusão no amor.” Rousseau.

Sentido de vida e expectativa de felicidade futura.

O ser apaixonado sente que encontrou o seu sentido de vida e que vai ser feliz para sempre.

“Investindo uma qualquer mulher de mil felicidades futuras, o homem vulgar pensa ter ao seu alcance, e sem demasiado esforço, o sentido da sua existência.” Lucrécio.

“Que coisa incrível isto de ver alguém em princípio sensato relacionar “a posse de uma determinada mulher à representação de uma felicidade infinita.” Schopenhauer.

“Diotima: - Pois o mesmo se dá com o amor: desejo do bem e da felicidade, em geral, eis no que para todos consiste o grande e astucioso Eros. Mas há muitos modos de dar satisfação ao amor e, entre eles, o de procurar a riqueza, o desporto, a filosofia, aos quais, todavia, não se aplicam correntemente os nomes de amante e amado; apenas a uma determinada espécie de amor e aos seus sequazes é que se dá o nome que de direito pertence ao gênero todo: amor, amar amante...” Platão.


Sentimento de imortalidade e consolo da alma.

A consciência da mortalidade é a maior dor da alma humana. O amor faz-nos sentir eternos. Apaixonados, nunca mais nos lembramos que vamos morrer.

“ (...) mas creio que é para alcançar um louvor imortal e uma fama semelhante a dos que acabei de citar [Alceste, Aquiles e Cordo], que os homens se sujeitam a todos os sacrifícios, e tanto mais voluntariamente quanto melhores forem, pois assim sendo tanto mais amam a imortalidade (208D)!” Diotima, no Banquete, Platão.

O amor é um “Sentimento consolador que parece oferecer aos homens uma compensação pelas dores muito concretas da condição humana.” Schopenhauer.

Eu é que agradeço.

Os E.U.A querem levar a democracia ao médio oriente.

As Nações Unidas querem acabar com a fome em África.

A igreja quer trazer paz ao mundo.

O governo português quer diminuir o desemprego.

Os maridos querem melhorar a vida das esposas.

Os patrões querem melhorar as condições dos trabalhadores.

Os trabalhadores querem aumentar a produção da empresa.

Os jornais querem informar os leitores.

Os portugueses querem a liberdade dos gregos.

O sistema prisional quer acabar com as injustiças.

O apaixonado só quer o bem da sua amada.

Todos têm uma ideia muito nobre para embelezar a causa de si próprios.

“Se deixarmos por algum tempo valer o princípio do desinteresse, teremos de perguntar: não queres interessar-te por nada, entusiasmar-te – por exemplo, pela liberdade, a humanidade, etc.? Claro que sim, mas isso não é interesse egoísta, não significa ser-se interesseiro, mas um interesse humano, isto é, teórico, um interesse não por um indivíduo ou pelos indivíduos (“todos”), mas pela ideia, pelo homem! E não percebes que também te entusiasmas apenas com a tua ideia, a tua ideia de liberdade?” Max Stirner, em O único e a sua propriedade.

Sentidos de vida I.

Para encontrar um sentido de vida, que nos faça esquecer a nossa mortalidade e nos abstraia das misérias do quotidiano, podemos escolher estas vias.

A via da contemplação, que é o mesmo que dizer estudar e estudar-se. Trabalhar o espírito. Reflectir, tentar descobrir a verdade e aprofundar o pensamento abstracto. Pensar no ser enquanto ser.

“O otium permite-nos fazer um exame de consciência, estudar, entregar-nos a diversos exercícios espirituais, praticar a virtude, e também aproveitar o tempo disponível. (…) um período de reconstrução de si mesmo e da sua conexão com o mundo.” Séneca, em Da Brevidade da vida.

A via da acção, que se traduz no envolvimento activo numa causa, que pode ser a liberdade, a humanidade, a igualdade, a justiça, a luta contra a fome, contra o racismo, entre outras.

“Toda a espécie de envolvimento activo nos assuntos deste mundo.” Hannah Arendt, em A Condição humana.

E a via da distração e da transgressão: a da ardência, da embriaguez, da desordem, da diversão, da boémia, do excesso. A de andar a passear, à deriva.

"Para o perfeito Flâneur, para o observador apaixonado, é um imenso júbilo fixar residência no numeroso, no ondulante, no movimento, no fugidio e no infinito. Estar fora de casa, e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre; ver o mundo, estar no centro do mundo e permanecer oculto no mundo, eis alguns dos pequenos prazeres desses espíritos independentes, apaixonados, imparciais, que a linguagem não pode definir senão toscamente." Baudelaire, em O pintor da vida moderna.

A paixão empilha-os todos. É uma ideia, uma causa, que nos impele a contemplar, agir, cooperar, arder e andar à deriva. Absorve todos os sentidos, a vida toda.

Ou, como diria Musil,

“A paixão é o estado no qual todos os sentimentos e ideias se encontram no mesmo espírito.”, em O homem sem qualidades.

Deve ser por isso que o amor é “o objectivo último de quase todas as aspirações humanas”, nas palavras de Schopenhauer.

E será também por isso que dá origem aos maiores sofrimentos.

Quando termina um amor, não é a pessoa que se perde. É o sentido da nossa existência.
Libertarias, Vicente Aranda.

                    Banda sonora

Comida pós-moderna III.


“O mais importante para a saúde de uma pessoa não é necessariamente se ela consome ou não os nutrientes bons ou maus, nem as calorias que consome. Mais do que qualquer outra coisa, o que dita uma dieta saudável é o facto de aquilo que se come ter sido cozinhado em casa e não numa empresa. As empresas cozinham de uma forma muito diferente das pessoas. Usam vastas quantidades de sal, gordura e açúcar, muito mais do que nós usaríamos alguma vez em casa. E a razão pela qual elas o fazem reside no facto destes ingredientes serem incrivelmente atractivos e baratos e, quando colocados numa batata, por exemplo, ou em bolos, e várias outras formas de junk food, são incrivelmente viciantes.”

Comida pós-moderna II.