Amores, hipsters e fotografias.

Há vezes em que as respostas aos meus textos são melhores do que os próprios. É o caso desta, do Filipe Zenhas Mesquita.

Boa noite,

Terminei de cavilar a minha ideia e é a seguinte:

Da mesma maneira que tu dizes que a malta posta fotos na noite para impressionar/existir aos olhos da desejada, antigamente escreviam-se poemas de amor. O jovem afectado dava-se ares de poeta tuberculoso e lírico. Acho que o poeminha mais tarde se transformou no hobby da fotografia amadora. Com maior poder de compra e menos leituras (parece um paradoxo), a malta começou a comprar câmaras de fotos cada vez mais caras e a tirar fotos cada vez piores. Recordo-me de ver os blogs de fotografia cheias de fotos a preto e branco dos mendigos e dos pombos dos Aliados e S. Bento. A fotografia e a poesia eram, portanto, duas formas de surgir aos olhos da desejada como alma sensível e como de alguma forma assombrada pela ausência do amor, como que a reclamar uma regeneração pela sua presença. Com o passar dos tempos e com o aumento do poder de compra, estas formas ainda relativamente intelectuais de idealização do eu perderam lugar para o culto do corpo. O metrossexual é o alvor cavernícola do hipster. "O jovem" afectado dedica-se ao seu corpo de forma a construir a imagem ideal de si. Como esta relação entre alma/corpo é extremamente clivada e pode conduzir rapidamente à loucura e a comportamentos sexuais bizarros, surge o hipster. O hipster engole todas as formas de idealização do jovem romântico anteriores. A poesia lírica, a fotografia amadora e o culto do corpo. É a construção de uma visão permanente do outro em nós. mas de um outro completamente idealizado e, portanto, um eu completamente asfixiado por essa idealização. De forma a açambarcar o máximo possível, não se pode implicar realmente com nada. Coca-cola zero. As possibilidades de uma existência infinita, e ao mesmo tempo segura, são enormes. Existe uma simbiose entre o jovem e a cidade, criando um plano sem ponto de fuga. Onde se comia uma porcaria qualquer, hoje come-se o melhor cachorro do mundo e arredores por 10 euros. Uma situação ideal. Uma opção segura. Substitui-se a cidade pelo destino turístico, onde sempre se chega mas nunca onde se está. O mundo resume-se a meias escolhas, onde sempre se pode escolher outra vez porque escolhemos sempre o mesmo.
Resumindo: no esforço de agradar ao outro esquecemos-mos de perguntar ao outro o que lhe agrada. Esta armadilha tornou-se fatal porque jorra dinheiro e tranquilidade.

Sobre os concertos de We Trust e X-Wife, ontem, na Casa da Música.

Cheguei à igreja, desculpem, ao concerto dos We Trust, às onze e meia. Estava cheio de adolescentes muito arranjadinhos, sem cabelo à tijela. Uma espécie de mocidade portuguesa mas com telemóveis topo de gama e com ares muito relaxados. Tinham ido ouvir gospel-outkast e via-se que se sentiam muito felizes. O vocalista estava sempre a dizer “estou muito feliz”, “sejam felizes”, e tentava dançar como o Justin Timberlake, apesar de achar que estava a dançar à James Murphy. Depois, para apelar aos aplausos, fazia um movimento muito esquisito com as mãos, como bater palmas, mas em versão mecanizada, que parava segundos antes das palmas das mãos se tocarem. Ou seja, abro braços, fecho braços, simulo que vou dar uma salva de palmas mas afinal não dou. Era só para verem como se faz.
Entretanto, junta-se a Mariah Carey, uma rapariga que, pela expressão do vocalista, teve muita sorte em pisar o palco com ele e de poder gesticular a voz entre graves e agudos, com os olhos fechados, e movimentos faciais de sofrimento, ou outro sentimento muito profundo, cuja tradução não me sinto capaz de fazer. Seguiu-se o pedido para ligarem as luzes dos telemóveis e, todos juntos, todos ju-un-tos, fazerem uma grande festa da escola secundária, só que, por acaso, foi na Casa da Música.
Já tinha bebido três finos para aguentar aquilo de saltos altos, vestido curto e eyeliner preto. Eu, que sou sempre a mais beta dos concertos rock (manias), parecia uma gótica industrial no meio da criançada de pulseiras de berloques e cabelinhos esticadinhos. Bem, acabou. Com as luzes já acesas, lembrei-me do fabuloso concerto dos Pop Dell'Arte que vi, há 10 anos atrás, naquela sala, que é uma das melhores do Porto para os ver. Vou à rua, que ninguém fuma em sítios lavadinhos como este, e eu já deixei de fumar há 4 anos, mas a minha companhia não.
Volto à cena. Três minutos e os X-Wife carregam os primeiros acordes. Entrou bem. Mesmo bem. Aquelas batidas electrónicas entraram-me no corpo com a intensidade que estava a precisar. Fortes e aguitarradas. Uma maravilha. Quanto à banda, toda a gente sabe que sou fã do Rui Maia, um músico honesto que sempre ouviu, compôs e tocou música com a elegância própria de quem se está nas tintas para a elegância. Daqueles casos raros em Portugal que vive para a música porque adora música e não porque quer ser famoso, que não é o mesmo que ser reconhecido, porque isso ele é. O baterista é muito bom, o baixista curtiu mais do que toda a gente que estava lá dentro (Fernando, estamos contigo) e o vocalista esteve à altura. Tocaram músicas de todos os álbuns e actualizaram os sons mais antigos. Não era necessário, mas ficou muito bem. As músicas mais recentes, que tentam acompanhar as tendências actuais do meio musical internacional, são pobres, mas misturadas com as outras, aguentam-se perfeitamente. É aqui que é preciso ter atenção. Os X-Wife, banda portuense de rock electrónico, na tentativa de agradar a gregos e a troianos, não se respeitaram enquanto tal e começaram a tocar todos os acordes que estavam na moda musical do momento e, às tantas, deixou de se perceber o que aquilo era. Quando se é mau, isso é uma vantagem. Quando se é bom, é uma desvantagem muito grande. As bandas têm uma identidade que é preciso respeitar, sob pena de não serem respeitadas. Por isso é que é importante não nos esquecermos de onde viemos e sabermos para onde queremos ir. O público das bandas da moda é o público da moda. Volátil, pastilha elástica. Hoje, ouve isto, amanhã, aquilo. E, na maior parte das vezes, nem está a ouvir nada. Não se pode estar à espera de um público, quando se toca para outro. Andar sempre a trocar de estilo e de amigos musicais para se apanhar o público deles é má estratégia. Um grande músico toca sozinho, para dez ou para 1000 pessoas, da mesma maneira, que é a maneira de quem ama a música, não a fama.
Quatro anos depois do último concerto no Porto, os X-Wife regressaram com bons acordes e puseram o público a mexer. Valeu a pena. Ficamos à espera que valha ainda mais.

Ideias: quem dá menos?

Queria muito participar neste concurso. 2.000€ davam-me jeito para pintar a casa e comprar umas botas novas. Para saber o que é uma dissertação de mestrado “assente num tema de inovação e do empreendedorismo”, fui ao dicionário.

Inovação: Introduzir novidades em. Renovar; inventar; criar.

Empreendedorismo: Atitude de quem, por iniciativa própria, realiza acções ou idealiza novos métodos com o objectivo de desenvolver e dinamizar serviços, produtos ou quaisquer actividades de organização e administração.

“O conteúdo, a forma e o método das dissertações são alguns dos requisitos, a par da originalidade da investigação, a aplicabilidade dos resultados e o potencial de difusão dos resultados a nível nacional e internacional.”

Mas, afinal, é para escrever sobre o quê? Este pessoal quer que eu lhe venda a minha tese mas não faz a mínima ideia do que quer comprar. O título devia ser “Mandem-me as vossas teses que eu pago aquela que tiver a ideia que me vai dar mais dinheiro a ganhar” ou, em linguagem pós-moderno-empreendedora “Façam um forcing para terem ideias que acrescem valor”, ao meu bolso. “As contas são fáceis. Se concorrerem 100 cromos, gasto 2.000€ em 100 ideias, que é o mesmo que dizer 20€ por cada ideia. A isto é que se chama alavancagem! Estes gajos estão tão mal de dinheiro que me oferecem as teses com uma probabilidade mínima de ganharem 2.000€, um estagiozeco de 6 a 9 meses e uma “presença” num evento. Ahahah.”

O método.

Ai agora vocês acham que podem escolher quem é que pensa bem e quem é que pensa mal? Andam todos com os métodos e os modelos na cabeça e depois não conseguem sair disso, não é? Gostava de vos ver a escrever qualquer coisa que não fosse dos Platões ou dos Kants. Ficavam logo sem chão, não era? Como é que alguém consegue pensar sem os ter lido? Arranjem-me umas muletas, por favor. Eu quero lá saber se as minhas ideias são adequadas, se têm método, se são científicas, universais, cor-de-rosa ou amarelas. Já não me faltava ter os padres da consciência, os padres do inconsciente, os padres humanistas e os padres da história, para me dizerem como devo pensar, agora é a epistemologia e mais não sei o quê. Não é o marxismo o tribunal do povo? E eu detesto tribunais! Ide pregar os novos aparelhos de poder no pensamento para outra freguesia. “Mas, assim, nunca serás reconhecida como autora”. Ainda não perceberam que a minha ideia é precisamente a inversa: ignorar todos os que se consideram “autores” e sacudir os modelos de pensamento?  Eu quero é roubar ideias, que não é o mesmo que plagiá-las. Soltá-las da história e do futuro. Tirá-las dos sítios onde estão e pô-las noutros lugares. Nos lugares que me apetecer! E se um dia me apetecesse definir-me, o que seria uma aberração, eu responderia “não um modelo, um método ou um exemplo, mas um pouco de ar puro”. E, agora, não digo a quem roubei isto. Corram para o google. Ou respirem!

Teoria geral do escritor.

Quando o escritor fala, ninguém o quer ouvir. Quando escreve o que disse, toda a gente o quer ler.

I'll give you some war.

The Parkinsons, Nothing to lose.

Come on baby I've got nothing to lose 
Catch my fall stay so close 
Give me some love 
I'll give you some war 
Come on baby I've got nothing to lose
Sit down sit down 
Right next to me 
Catch the fire my baby 
Where can my baby be

Os artistas.

Além dos motivos habituais, os artistas bebem álcool porque não é possível trabalhar intelectualmente mais do que 3 horas por dia, sem recorrer a drogas. E, depois da criação, com o cérebro esgotado, há que fazer passar as horas seguintes. Até que, no dia seguinte, se consiga criar outra vez. Alguns tomam drogas para conseguirem criar mais no mesmo dia. Mas isso não costuma dar muito bom resultado. Escrevem livros enormes, fabulosos, pintam quadros deslumbrantes, compõem músicas memoráveis, e depois matam-se. O abuso diário das drogas para a criação tem essa vantagem e essa desvantagem: ultrapassar os limites humanos e criar um enorme sofrimento nas cabeças deles.
Criar é como tomar anfetaminas, ter um orgasmo, andar de montanha russa. Sente-se uma enorme adrenalina no momento, e desfalecimento de seguida. Extenuados, não há nada que lhes apeteça fazer, a não ser sexo ou beber. Há quem tome drogas, agora para adormecer. Há quem force as sestas. Fazem caminhadas para cansar o corpo, dormem, acordam e voltam a escrever, a pintar, a compor. Também vão para o campo ou para a praia, ver o rio ou o mar, para afastar o tempo. Ir para os ecrãs é que não. Isso cansa o cérebro para nada. É lixo. Energia deitada fora. Se calhar é por isso que agora ninguém cria nada. É preciso parar o cérebro para pensar. Depois, como as histórias, os sons e as cores dos livros, das músicas e das artes plásticas são muito mais interessantes do que as da vida real, especialmente porque foram criadas por pessoas parecidas com eles, que pensam de forma semelhante, acham que as pessoas que não criam são diferentes, estranhas, exóticas. E não pensem que as desprezam. São para analisar, para descobrir. Na maior parte das vezes, até gostam delas porque apreciam a normalidade que não sentem. Fazem-lhes perguntas, ficam a olhar para elas a tentar perceber como funcionam, o que as motiva, como vivem, o que gostam, o que fazem ao domingo à tarde, enquanto eles olham para o tecto à espera que cheguem novamente as horas em que conseguem criar. Por isso é que muitos amigos de artistas os aconselham a não deixar o trabalho das 9h às 17h. Pelo menos, estão entretidos nessas horas. E ganham adubo para a imaginação. Têm é que escolher bem os horários. Não vá oferecer-lhe o tempo da criação.

Revelações.

Malcontent, sábado, 5 de Dezembro de 2015, no Cave 45.

Foi o melhor concerto que vi este ano. Apeteceu-me ondular as ancas e atirar os cabelos para trás dos ombros ao som dos acordes carregados deste trio portuense. De todos os nomes que chamam à música deles, indie, alternativa ou noise, eu não indicaria nenhum. Mas também não chamaria nenhum deles aos Jesus and Mary Chain. É rock sofisticado, para se ouvir em ambientes escuros, com vestidos e camisolas pretas. Muito bem tocado. Envolvente e poderoso. Até ao concerto, apenas tinha ouvido algumas músicas criadas pelo Sérgio Costa, pelo Filipe Pereira e pelo Jorge Oliveira. Mas, depois disto, fui ouvir mais. Agora, apetece-me apagar as luzes, acender uma vela, fechar os olhos e dar longos beijos na boca. Com o disco em repeat, no volume máximo.

Malcontent, 35 blues.

Música de abertura do Riot Sound Effects.

Emoção, eu amo-te.

Adorei aquele vídeo super viral do avozinho que simula que morreu mas afinal está vivo. Quase fiquei a achar que sou muito má pessoa por não dar atenção a quem merece e apenas lembrar-me do que é importante na hora da despedida. Estive mesmo perto de me sentir uma grande gananciosa que põe o trabalho à frente do mais importante, o amor. Mas não. Achei que não estou mais tempo com determinadas pessoas por dois motivos básicos: ou porque elas não me fazem sentir bem ou porque, efectivamente, não tenho tempo.

O problema deste vídeo é apelar à auto-culpabilização, o que é muito duvidoso. Na sociedade contemporânea, bué da neoliberal, as pessoas não socializam mais porque estão exaustas. Trabalham demais, no e fora do trabalho. E têm, realmente, muito pouco tempo para fazerem o que lhes apetece, com quem gostam. Por isso é que este vídeo não serve para nada e é apenas um sintoma desta nova tendência da exploração das emoções como recursos para aumentar a produtividade e o rendimento. Os objectivos são manipular os nossos instintos mais básicos e criar instabilidade, os dois pontos de partida para o consumo inconsciente.

Como não podemos consumir coisas, infinitamente, mas emoções sim, é preciso apelar à emoção para vender. Ou para controlar. É por este motivo que, agora, nas grandes empresas, só se fala em capital humano, gestão de recursos humanos, gestão emocional e mais não sei quantas formas sofisticadas de dizer “como controlar pessoas e levá-las a fazer o que nós queremos”, que é apenas uma coisa: aumentar o rendimento delas, para aumentarmos o nosso lucro, ou a nossa notoriedade, de acordo com a actividade da empresa. Porque dominar um objecto é muito mais fácil do que dominar uma pessoa. Os seres humanos, que, dizem os grandes livros de gestão, são “o factor-chave das empresas”, são um bocado complexos, pelo que é preciso perceber bem como eles funcionam e fazer com que ganhem amor à camisola. Só que é à camisola do empregador, não à do empregado.

Resumindo, o apelo à emoção é uma forma de alcançar os nossos instintos mais básicos e explorá-los a um nível pré-reflexivo, desprovido de consciência explícita, cujo objectivo é influenciar as nossas acções. Ou seja, pretendem induzir-nos a comprar, ou a comportarmo-nos de uma determinada forma, que beneficie quem a explora. A emoção é, assim, uma forma muito bonita, e eficaz, de manipulação.

Depois de ver este vídeo, alguém vai passar a visitar regularmente o avô, o tio ou o primo? Não. Mas é bem capaz de comprar umas coisas que estão ali à mão, para consolar a alma angustiada pela falta de tempo, seja para os visitar, seja para descansar, seja para fazermos qualquer coisa que, pelas nossas limitações, queremos fazer mas não conseguimos.

Sobre os despedimentos dos jornalistas do Sol e do I.

Anda para aí muita gente a dizer que os jornais Sol e I vão despedir uma catrefada de jornalistas porque as pessoas não compram jornais, porque as pessoas não pagam pelas notícias digitais, porque as pessoas se demitiram da sua função democrática, porque as pessoas não querem saber das coisas importantes e porque o que vende é futebol e fado. Mas a questão não é as pessoas não pagarem, mas porque razão não estão dispostas a fazê-lo. O problema é que as notícias que os jornais de hoje produzem não interessam a ninguém. Se os directores dos jornais obrigam os jornalistas a escrever sobre o que faz 1% da população, constituído pelos políticos e pelas pessoas que têm poder financeiro ou outro, como é que esperam que os restantes 99% comprem estas notícias que não lhes dizem nada? Se eu acho que os políticos não resolvem os meus problemas, por que haverei de ler notícias sobre o que eles andam a fazer? Por que é que os jornais portugueses não falam sobre a vida das pessoas? E não são as notícias dos lifestyles, os acidentes de carro, e as comidas gourmet, que, como se compreende, ainda vendem. É que as pessoas continuam a vestir-se, a terem que transportar-se e a comer. Mas a cultura que estes jornais falam é a “grande cultura”, a política é “a grande política”, as empresas são “as grandes empresas”. Se é para essa gente que falam, esperem que seja essa gente a comprar-vos os jornais, e não a restante população que nunca aparece em lado nenhum e cujos verdadeiros problemas são silenciados. O que é realmente preocupante é que estes jornalistas ficaram desempregados porque esta gente, que escolhe sobre o que eles podem falar, e que destaques podem dar, não sabe o que anda a fazer. Façam jornais locais, jornais temáticos, jornais de especialidade, o que vocês quiserem. Falem para e sobre as pessoas que querem que vos compre os jornais. Tudo, menos isto, que, como se tem verificado, não está a correr lá muito bem.

Na crítica, concordo sempre.

Sempre que me fazem uma crítica, apetece-me dizer: "Concordo, concordo. Sigamos em frente". As críticas nunca acrescentam nada. Não têm poder de transformação. Quem critica apenas está a exorcizar algum incómodo. É até um pouco ingénuo achar-se que a crítica pode ser ponto de partida para o novo. É apenas o explanar de uma frustração que pretende disciplinar o outro. "Estás errado. Eu estou certo. Deves comportar-te assim.", que é o mesmo que dizer: " Deves comportar-te da forma que eu considero correcta e não da forma que tu queres". Quando as pessoas não pretendem estabelecer hierarquias de pensamento, apenas dizem "Eu não gosto disso. Não concordo com aquilo". Mas abstêm-se de dizer "Não devias ter feito isso. Estás errado se fizeres aquilo". Quando critico, quero que o outro mude. Acuso-o de não prosseguir os meus interesses.
Outra coisa bem diferente é a opinião. "Eu acho isto. Eu não penso assim. Sobre isso, tenho isto a dizer." Ao contrário da crítica, que encerra, a opinião é fecunda. Tem uma potência transformadora na visualização de novas formas de pensar. Depois, o outro fará o que quiser com ela. Mas já ficou com mais uma. Abriu-se uma nova possibilidade.

O burlesco e o sublime.

Há uma coisa que me tem intrigado ultimamente: por que é que toda a gente quer impor-me sentimentos? Querem que eu sinta temor a deus, querem que eu sinta temor dos meus pais, dos meus avós, do meu chefe, do gerente do banco, de toda a gente em geral, e delas em particular. E chamam a isto respeito. "Tens de respeitar isto, tens de respeitar aquilo." E eu fico sem perceber o que eles realmente querem. Mas parece-me que andam à esmolinha das venerações. E se eu sentisse o que me apetecesse dos meus pais, dos meus avós, do meu chefe e do homem que trata das minhas contas no banco? Porque insistem que devo sentir o que elas desejam que eu sinta e não o que eu sinto efectivamente? É que é um bocado desgastante ter que fazer uma expressão de extrema seriedade sempre que surge o burlesco na vida. Tudo é sagrado! A economia é sagrada, os mercados são sagrados, a ciência é sagrada, os princípios gerais são sagrados. E ao sagrado o que é que se exige? Submissão e devoção. O problema é que, na maior parte das vezes, é, realmente, um caso sério, mas de idiotice. Basta olhar para o lado para perceber que o século XXI, tão doente mentalmente, está cheio de gente que levou tudo demasiado a sério.

Estátuas personalizadas.

As pessoas que vivem no luxo e no ócio têm três características fundamentais. Primeiro, são educadas desde cedo a obedecer a outras pessoas, a figuras religiosas, ou a ideias. A segunda é que se ocupam primordialmente dos amores. Como têm quem lhes faça os penosos serviços domésticos, e não só, ficam com imenso tempo disponível para a elegante profissão do exercício das paixões. Terceiro, dedicam-se afincadamente ao cultivo da elegância. Para se distinguirem dos vulgares comuns, criam detalhadas regras para o vestuário, para o corpo, e para a alma. Ambas podem rir, mas do corpo do pobre sairá uma risada estridente e do corpo do rico sairá uma gargalhada requintadamente disciplinada. E o seu desejo mais ardente é a originalidade. Precisam de ser diferentes dos outros.
Como gosto de ver toda feliz, encontrei uma solução para ajudar a aquecer estas almas douradas. Foi bastante dispendiosa mas tem tido um efeito surpreendente. Comprei uma impressora 3D e, sempre que estes seres começam a trotear magníficos nos seus cavalos invisíveis, imprimo uma estátua personalizada e ofereço-lhes. Agora, que estou a ficar famosa como fabricante de estátuas personalizadas, vêm até pessoas do estrangeiro para me pedir uma. Cercam-me a casa, tiram-me fotografias, enviam-me cartas a dizer que uma estátua lhes pode mudar a vida. Todos querem uma estátua de si próprios. Que aborrecimento.

No início.

Quando era pequena e vivia no meio das jóias e dos empregados, pedia muito a deus que me levasse dali para um sítio calmo, onde pudesse ler, ou para outro, com pessoas sem poder, amigos e solidariedade. Deixei de acreditar em deus mas todos os meus desejos foram realizados. Se nos conseguirmos lembrar do que pedimos em crianças, iremos perceber que quase tudo se concretizou. O mal da vida começa aí, no momento em que deixamos de ser capazes de nos lembrar do que sempre desejamos.

Gota a gota.

Todos os dias me perguntam quando é que escrevo um livro. E eu respondo sempre: quando tiver tempo, e se me apetecer. Com o trabalho, a casa e a comida para fazer, sobra-me quase nada. Para esse problema, tenho uma mezinha. Sempre que começo a angustiar pela falta de tempo para escrever, abro As imagens de pensamento, do Walter Benjamin, na parte que diz:

Uma eficácia literária significativa só pode nascer de uma rigorosa alternância entre acção e escrita. Terá de cultivar e aperfeiçoar, no panfleto, na brochura, no artigo de jornal, no cartaz, aquelas formas despretensiosas que se ajustam melhor à sua influência sobre comunidades activas do que o ambicioso gesto universal do livro. Só esta linguagem imediata se mostra capaz de responder activamente às solicitações do momento. As opiniões estão para o gigantesco aparelho da vida social como o óleo para as máquinas: ninguém se aproxima de uma turbina e lhe verte óleo para cima. O que se faz é injectar algumas gotas em rebites e juntas escondidos que têm de se conhecer bem.

Mal acabo de ler isto, sinto logo que não ter tempo é uma grande vantagem. É que, se não fosse a falta dele, punha-me a escrever livros infinitos. E, afinal de contas, quem é que tem tempo para os ler?

Na aula de revolução.

- No outro dia, fiz uma revolução.

- Fizeste? Onde?

- No ginásio.

- Como é que fizeste uma revolução no ginásio?

- Numa aula de grupo, levei os meus alunos para a rua, pus músicas de intervenção a tocar, disse para toda a gente pôr um dos braços no ar e fechar bem os punhos.

- E depois?

- Depois, tinham de caminhar.

- Assim, de braço no ar, de punho fechado?

- Assim mesmo. Alternando, claro, para ganharem músculos nos dois braços.

- Mas isso não é uma revolução. Nas revoluções, as pessoas dizem coisas. Na tua revolução só se ouve?

- Não, não. Depois, criei frases de ordem: "Abaixo o governo", " Queremos mais pão", "Queremos um futuro".

- E se alguém quisesse dizer coisas diferentes?

- Pedíamos desculpa e explicávamos muito bem a razão de todos terem que dizer o mesmo.

- E se as pessoas se recusassem a participar na tua aula de revolução?

- Tentava fazê-las perceber o quão burras estavam a ser e que, sem a aula de revolução, nunca conseguiriam ter os músculos que tanto desejavam. Já que falas nisso, por acaso, tive um problema complicado nessa aula.

- Tiveste?

- Sim. um dos alunos virou-se para todos e disse: " Vou ganhar músculos à minha maneira. Não gosto que escolham as músicas que tenho de ouvir nem as palavras que tenho de dizer".

- E qual foi a vossa reacção?

- Ficamos a olhar uns para os outros, murmuramos, e continuamos a aula.

- Ignoraram-no?

- No início, sim. Mas, depois, ele pôs-se, no meio da aula, a gritar " Abaixo as aulas de revolução", como um louco. Tive de chamar o segurança.

- Feriu alguém?

- Não. Mas estava muito histérico, pelo que pedi ao segurança para chamar o 112. Via-se que o senhor não estava bem. Precisava de ajuda psicológica.

- E a seguir?

- Continuamos os exercícios.

- Já pensaste como seria se tivesses mais alunos como esse?

- Felizmente, estes casos são excepções e estão controlados. Já há muitos tratamentos para estes problemas.
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  1. Sobre a ideia da revolução enquanto exercício de ginástica, ler O Torcicologologista, Excelência e ver o filme La Chinoise, do Godard.

Adoro chorar.

Tenho um amigo que acha que, por não ter pena da morte do Paulo Cunha e Silva, sou psicopata. Nunca vi o homem na vida, a não ser em páginas de revistas, que eram imensas, eu sei. Mas, para demonstrar que sou uma pessoa com sentimentos nobres, a partir de agora, vou ler todas as páginas necrológicas dos jornais e chorar por, pelo menos, sete pessoas por dia. Mas só pessoas importantes, que mortos anónimos não dá efeito nenhum.

A dois.

Os livros e os homens podem levar-se para a cama. Afundamo-nos nos primeiros e os segundos afundam-se em nós.

Mosquitos em Roma.

Elas ainda gastam mais do dobro do tempo em tarefas domésticas do que eles, diz o Público de hoje. "Desigualdade de género? Ó Fabiana, só vês mosquitos em Roma, andas um bocado tapada com isso, vês tudo com o filtro da opressão." Vejo, vejo.


Para isto, há apenas uma resposta, desobedecer. 


Quem tiver tempo, ainda pode ver um videozinho e ouvir uma musiquinha.

Inimigos.

Os meus inimigos sãos os poderes. Não as pessoas que o detêm, essas é importante escarnecer, mas nas formas que eles assumem no interior de nós próprios. Por isso é que, para mim, a desconstrução e a desobediência são as únicas formas de os destruir.
As histórias de quem detém o poder não me interessam. Um diz isto, o outro diz aquilo, e cada vez se percebe menos. Confusos, sentimo-nos cada vez mais impotentes na transformação das nossas vidas.
É a palavra "suas" que faz aqui toda a diferença. Não interessa andarmos preocupados com o que os outros andam a fazer. Só podemos mudar-nos a nós e aquilo a que temos acesso. Se podermos ajudar o outro, e ele quiser ou pedir ajuda, fá-lo-emos. Mas, falar, com muita emoção, sobre o que não conhecemos ou sobre coisas às quais não temos acesso, ou são desculpas para a colonização ou é desinformação. É telenovela.

Fronteiras imperceptíveis.

Fazer um vídeo ou um filme, escrever um texto, desenhar, pintar, esculpir ou compor uma música para mim, é muito diferente de o fazer para uma empresa. Na primeira, apenas estou limitada pelas marcas deixadas no meu pensamento. Na segunda, estou limitada, não só pelas marcas do pensamento de quem me paga, como também, e sobretudo, pelo objectivo da criação, o lucro.
Ainda que separados por uma fronteira imperceptível, os gestos, o pensamento e a criação de um realizador, ilustrador, escritor ou músico nas empresas culturais ou nos seus espaços pessoais são radicalmente diferentes.
Por isto, às vezes, fico muito concentrada a olhar para as pessoas que criam arte na rua. E tenho visto uma coisa estranha: pessoas que não têm ninguém a pagar-lhes e comportam-se como se tivessem. Tiram fotografias a pensar no lucro, escrevem a pensar no lucro, compõem a pensar no lucro. E isto surpreende-me. As pessoas agora são exploradas duas vezes. Primeiro, pelo parco valor que é dado ao seu trabalho, segundo, por si próprias, já que continuam a comportar-se como se estivessem a trabalhar, mesmo na hora da diversão.

Ideias vs ordens.

Toda a gente sabe que os conteúdos dos livros obrigatórios ou recomendados das escolas portuguesas são pensados e desenhados, em primeiro lugar, pelo Estado e, em segundo lugar, por grandes empresas editoriais. Toda a gente também sabe que o que os professores fazem não é transmitir informação mas ordenar que os alunos façam os trabalhos ou os exercícios de uma determinada forma. Quando os estudantes não fazem o exercício como os professores ordenam, têm má nota ou reprovam, tendo que repeti-lo até estarem de acordo com as suas ordens. Assim, o sistema de educação português tem uma tripla disciplinação do pensamento. Primeiro, é sempre a favor do Estado, segundo, nunca é contra as grandes empresas, terceiro, é imposto por um grupo profissional também formado com estas orientações. É por este motivo que as artes, nas suas variadas formas: plásticas, cinematográficas, literárias, musicais, etc., criadas autonomamente, são a maior fonte de emancipação do ser humano.

Questões editoriais.

Caros leitores, como já devem ter reparado, eu gosto muito de usar as seguintes palavras, expressões ou frases: "É que", "Por isso", "Sobre isto", "Eu" (que pode ser ocultado), "Pelo que", ":", "Primeiro, segundo, terceiro", "Ainda por cima", "Está bem?", "Que", "Até", "Toda a gente sabe", "Então", "E por aí fora".

É que escrevo sempre a correr. Toda a gente sabe que eu só tenho uma hora por dia para o fazer, e que acordo às 6 da manhã para isso. De outra forma, nem meia hora teria. Por isso, não tenho tempo para editar. Ainda por cima, escrevo directamente na página do blogue, no telemóvel, que não tem edição, pelo que também pode acontecer dar um ou outro erro. Então, dêm-me um desconto e centrem-se na ideia, está bem? Um dia, hei-de ter tempo para editar isto em condições. Ou deixo ficar assim, que as marcas da oralidade até que são bonitas.

Hierarquia vs transversalidade.

Se há coisa indigna neste mundo é achar que se pode falar em nome dos outros. Os médicos acham que podem falar pelos doentes, os que estudaram mais pelos que estudaram menos, os homens pelas mulheres, os professores pelos alunos, ou os empresários pelos trabalhadores. O que interessa é que cada um fale de si, ou enquanto membro do grupo a que pertence, e dos problemas políticos, financeiros, jurídicos, ou outros, que o afectam. Por isso é que eu acho muito estranho que um homem que nunca trabalhou por conta de outrem considere que pode falar por mim, que os académicos possam falar em nome do punk, que a classe média possa falar em nome dos pobres, ou alguém que nunca escreveu pelos escritores. Para que isto faça algum sentido, num hospital, por exemplo, terá que haver o grupo dos médicos, o dos enfermeiros, os trabalhadores da limpeza, financeiros, etc. e o grupo dos doentes. E não uma administração, ou o grupo mais privilegiado, a falar em nome de todos.

Funeral.

Só para dizer que hoje não morri na auto-estrada por um minuto. Foi um espectáculo de guinadelas, eu a andar de uma ponta da estrada até à outra, em ziguezagues incontroláveis. Os quilómetros, para esvaziar o depósito, marcavam 666. De um momento para o outro, o carro parou, pelo que me encontro na poltrona do lado direito da minha sala a escrever este texto comovente. Se morresse, isto deixava de ser divertido, por isso, parem lá com os bruxedos. Se, entretanto, for desta para melhor, não se esqueçam de pôr a tocar Dead Kennedys a caminho do cemitério. Pode ser que ainda oiça alguma coisa.

Eu sou terrível.

Acabo de receber esta mensagem de um amigo: "Vives desassossegada e escreves para desassossegar". Gosto muito dele mas não tem razão nenhuma. Primeiro, o meu único desassossego é não ter mais tempo para escrever. De resto, acho tudo muito divertido. Segundo, só escrevo para me divertir ainda mais. Desculpem não ter nenhum objectivo altruísta nisto.
Mas, só para não dizerem que sou má rapariga, peguem lá uma musiquinha para a tarde de domingo. 
 
Roberto Carlos, Eu sou terrível.

Liguem os telemóveis, vai começar o espectáculo.

Pronto, começou o espectáculo da compaixão. Sentem-se todos em frente à televisão, agarrem bem nos telemóveis, abram as redes sociais e comecem todos a chorar copiosamente. Mas não é só hoje, está bem? Amanhã é pelos africanos, depois de amanhã pelos sírios, no dia seguinte pelos favelados, mais um dia para os mexicanos, outro para os hawaianos, até ao fim das vossas vidas. O que não falta é motivo para peninhas. Entretanto, enquanto estão aí entretidos, alguém vai tratando da vossa terra e da vossa vida.

Atentados em Paris.

É o que dá ficar-se cego pelo poder e pelas ideias. Matam-se uns aos outros. O ocidente (aka E.U.A e companhia) tenta colonizar o médio oriente. O oriente colonizado, que também costuma matar os próprios cidadãos, entra em guerra de guerrilha com o ocidente. Deviam ter visto a vossa terra ser bombardeada do nada, a vossa mãe, os vossos filhos e os vossos amigos a morrer na guerra para "levar a democracia ao médio oriente", a ver se não vos punham na cabeça que a solução era explodir com tudo. Ontem, foram 200. Anteontem, foram milhares. Todos inocentes, nas mãos de meia dúzia. Esses, que continuam a acumular riqueza com estas guerras, é que nunca explodem.

Nem saúde, nem tempo, nem dinheiro.

"Obesidade, depressão, consumo de medicamentos e doenças crónicas como a hipertensão, as dores lombares ou as alergias. As mulheres portuguesas estão 'à frente' em quase todos os indicadores de problemas de saúde."

As mulheres portuguesas estão mais doentes do que os homens porque fazem trabalho que não é delas. Ir ao supermercado, cozinhar, lavar, passar, limpar, roupa, chão e casas de banho. A dobrar, do marido, e a triplicar ou quadruplicar, dos filhos. Mais o emprego. Esgotadas, deprimidas, ansiosas por causa da exaustão, tomam comprimidos para aguentar aquilo que nunca deveriam sujeitar-se a fazer. Isso sem contar com o facto de terem que estar bonitas e com muita vontade de fazer sexo.

Depois, não me venham atirar areia para os olhos e dizer que o machismo não existe em Portugal, que vejo tudo com o filtro da opressão, e blá blá blá. Ide comprar e fazer a vossa comida e lavar a vossa roupa.

Ensaio sobre a loucura.

A diferença entre os loucos do manicómio e os loucos que estão cá fora é uma questão de poder e dimensão. Ambos atacam traiçoeiramente aqueles que tocam nas suas ideias fixas, mas os primeiros, que estão dominados pelos segundos, ocupam menos espaço.

Moradas no além.

Quando me dizem para seguir Deus, a bondade, a liberdade, a verdade, o bem comum ou a humanidade, fico sempre confusa. Afinal, é para fazer o quê?

Capa de revista.

Se se paga a uma modelo para ser fotografada, porque não se paga à criança fotografada na guerra?