Na crítica, concordo sempre.

Sempre que me fazem uma crítica, apetece-me dizer: "Concordo, concordo. Sigamos em frente". As críticas nunca acrescentam nada. Não têm poder de transformação. Quem critica apenas está a exorcizar algum incómodo. É até um pouco ingénuo achar-se que a crítica pode ser ponto de partida para o novo. É apenas o explanar de uma frustração que pretende disciplinar o outro. "Estás errado. Eu estou certo. Deves comportar-te assim.", que é o mesmo que dizer: " Deves comportar-te da forma que eu considero correcta e não da forma que tu queres". Quando as pessoas não pretendem estabelecer hierarquias de pensamento, apenas dizem "Eu não gosto disso. Não concordo com aquilo". Mas abstêm-se de dizer "Não devias ter feito isso. Estás errado se fizeres aquilo". Quando critico, quero que o outro mude. Acuso-o de não prosseguir os meus interesses.
Outra coisa bem diferente é a opinião. "Eu acho isto. Eu não penso assim. Sobre isso, tenho isto a dizer." Ao contrário da crítica, que encerra, a opinião é fecunda. Tem uma potência transformadora na visualização de novas formas de pensar. Depois, o outro fará o que quiser com ela. Mas já ficou com mais uma. Abriu-se uma nova possibilidade.

O burlesco e o sublime.

Há uma coisa que me tem intrigado ultimamente: por que é que toda a gente quer impor-me sentimentos? Querem que eu sinta temor a deus, querem que eu sinta temor dos meus pais, dos meus avós, do meu chefe, do gerente do banco, de toda a gente em geral, e delas em particular. E chamam a isto respeito. "Tens de respeitar isto, tens de respeitar aquilo." E eu fico sem perceber o que eles realmente querem. Mas parece-me que andam à esmolinha das venerações. E se eu sentisse o que me apetecesse dos meus pais, dos meus avós, do meu chefe e do homem que trata das minhas contas no banco? Porque insistem que devo sentir o que elas desejam que eu sinta e não o que eu sinto efectivamente? É que é um bocado desgastante ter que fazer uma expressão de extrema seriedade sempre que surge o burlesco na vida. Tudo é sagrado! A economia é sagrada, os mercados são sagrados, a ciência é sagrada, os princípios gerais são sagrados. E ao sagrado o que é que se exige? Submissão e devoção. O problema é que, na maior parte das vezes, é, realmente, um caso sério, mas de idiotice. Basta olhar para o lado para perceber que o século XXI, tão doente mentalmente, está cheio de gente que levou tudo demasiado a sério.

Estátuas personalizadas.

As pessoas que vivem no luxo e no ócio têm três características fundamentais. Primeiro, são educadas desde cedo a obedecer a outras pessoas, a figuras religiosas, ou a ideias. A segunda é que se ocupam primordialmente dos amores. Como têm quem lhes faça os penosos serviços domésticos, e não só, ficam com imenso tempo disponível para a elegante profissão do exercício das paixões. Terceiro, dedicam-se afincadamente ao cultivo da elegância. Para se distinguirem dos vulgares comuns, criam detalhadas regras para o vestuário, para o corpo, e para a alma. Ambas podem rir, mas do corpo do pobre sairá uma risada estridente e do corpo do rico sairá uma gargalhada requintadamente disciplinada. E o seu desejo mais ardente é a originalidade. Precisam de ser diferentes dos outros.
Como gosto de ver toda feliz, encontrei uma solução para ajudar a aquecer estas almas douradas. Foi bastante dispendiosa mas tem tido um efeito surpreendente. Comprei uma impressora 3D e, sempre que estes seres começam a trotear magníficos nos seus cavalos invisíveis, imprimo uma estátua personalizada e ofereço-lhes. Agora, que estou a ficar famosa como fabricante de estátuas personalizadas, vêm até pessoas do estrangeiro para me pedir uma. Cercam-me a casa, tiram-me fotografias, enviam-me cartas a dizer que uma estátua lhes pode mudar a vida. Todos querem uma estátua de si próprios. Que aborrecimento.

No início.

Quando era pequena e vivia no meio das jóias e dos empregados, pedia muito a deus que me levasse dali para um sítio calmo, onde pudesse ler, ou para outro, com pessoas sem poder, amigos e solidariedade. Deixei de acreditar em deus mas todos os meus desejos foram realizados. Se nos conseguirmos lembrar do que pedimos em crianças, iremos perceber que quase tudo se concretizou. O mal da vida começa aí, no momento em que deixamos de ser capazes de nos lembrar do que sempre desejamos.

Gota a gota.

Todos os dias me perguntam quando é que escrevo um livro. E eu respondo sempre: quando tiver tempo, e se me apetecer. Com o trabalho, a casa e a comida para fazer, sobra-me quase nada. Para esse problema, tenho uma mezinha. Sempre que começo a angustiar pela falta de tempo para escrever, abro As imagens de pensamento, do Walter Benjamin, na parte que diz:

Uma eficácia literária significativa só pode nascer de uma rigorosa alternância entre acção e escrita. Terá de cultivar e aperfeiçoar, no panfleto, na brochura, no artigo de jornal, no cartaz, aquelas formas despretensiosas que se ajustam melhor à sua influência sobre comunidades activas do que o ambicioso gesto universal do livro. Só esta linguagem imediata se mostra capaz de responder activamente às solicitações do momento. As opiniões estão para o gigantesco aparelho da vida social como o óleo para as máquinas: ninguém se aproxima de uma turbina e lhe verte óleo para cima. O que se faz é injectar algumas gotas em rebites e juntas escondidos que têm de se conhecer bem.

Mal acabo de ler isto, sinto logo que não ter tempo é uma grande vantagem. É que, se não fosse a falta dele, punha-me a escrever livros infinitos. E, afinal de contas, quem é que tem tempo para os ler?

Na aula de revolução.

- No outro dia, fiz uma revolução.

- Fizeste? Onde?

- No ginásio.

- Como é que fizeste uma revolução no ginásio?

- Numa aula de grupo, levei os meus alunos para a rua, pus músicas de intervenção a tocar, disse para toda a gente pôr um dos braços no ar e fechar bem os punhos.

- E depois?

- Depois, tinham de caminhar.

- Assim, de braço no ar, de punho fechado?

- Assim mesmo. Alternando, claro, para ganharem músculos nos dois braços.

- Mas isso não é uma revolução. Nas revoluções, as pessoas dizem coisas. Na tua revolução só se ouve?

- Não, não. Depois, criei frases de ordem: "Abaixo o governo", " Queremos mais pão", "Queremos um futuro".

- E se alguém quisesse dizer coisas diferentes?

- Pedíamos desculpa e explicávamos muito bem a razão de todos terem que dizer o mesmo.

- E se as pessoas se recusassem a participar na tua aula de revolução?

- Tentava fazê-las perceber o quão burras estavam a ser e que, sem a aula de revolução, nunca conseguiriam ter os músculos que tanto desejavam. Já que falas nisso, por acaso, tive um problema complicado nessa aula.

- Tiveste?

- Sim. um dos alunos virou-se para todos e disse: " Vou ganhar músculos à minha maneira. Não gosto que escolham as músicas que tenho de ouvir nem as palavras que tenho de dizer".

- E qual foi a vossa reacção?

- Ficamos a olhar uns para os outros, murmuramos, e continuamos a aula.

- Ignoraram-no?

- No início, sim. Mas, depois, ele pôs-se, no meio da aula, a gritar " Abaixo as aulas de revolução", como um louco. Tive de chamar o segurança.

- Feriu alguém?

- Não. Mas estava muito histérico, pelo que pedi ao segurança para chamar o 112. Via-se que o senhor não estava bem. Precisava de ajuda psicológica.

- E a seguir?

- Continuamos os exercícios.

- Já pensaste como seria se tivesses mais alunos como esse?

- Felizmente, estes casos são excepções e estão controlados. Já há muitos tratamentos para estes problemas.
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  1. Sobre a ideia da revolução enquanto exercício de ginástica, ler O Torcicologologista, Excelência e ver o filme La Chinoise, do Godard.

Adoro chorar.

Tenho um amigo que acha que, por não ter pena da morte do Paulo Cunha e Silva, sou psicopata. Nunca vi o homem na vida, a não ser em páginas de revistas, que eram imensas, eu sei. Mas, para demonstrar que sou uma pessoa com sentimentos nobres, a partir de agora, vou ler todas as páginas necrológicas dos jornais e chorar por, pelo menos, sete pessoas por dia. Mas só pessoas importantes, que mortos anónimos não dá efeito nenhum.

A dois.

Os livros e os homens podem levar-se para a cama. Afundamo-nos nos primeiros e os segundos afundam-se em nós.

Mosquitos em Roma.

Elas ainda gastam mais do dobro do tempo em tarefas domésticas do que eles, diz o Público de hoje. "Desigualdade de género? Ó Fabiana, só vês mosquitos em Roma, andas um bocado tapada com isso, vês tudo com o filtro da opressão." Vejo, vejo.


Para isto, há apenas uma resposta, desobedecer. 


Quem tiver tempo, ainda pode ver um videozinho e ouvir uma musiquinha.

Inimigos.

Os meus inimigos sãos os poderes. Não as pessoas que o detêm, essas é importante escarnecer, mas nas formas que eles assumem no interior de nós próprios. Por isso é que, para mim, a desconstrução e a desobediência são as únicas formas de os destruir.
As histórias de quem detém o poder não me interessam. Um diz isto, o outro diz aquilo, e cada vez se percebe menos. Confusos, sentimo-nos cada vez mais impotentes na transformação das nossas vidas.
É a palavra "suas" que faz aqui toda a diferença. Não interessa andarmos preocupados com o que os outros andam a fazer. Só podemos mudar-nos a nós e aquilo a que temos acesso. Se podermos ajudar o outro, e ele quiser ou pedir ajuda, fá-lo-emos. Mas, falar, com muita emoção, sobre o que não conhecemos ou sobre coisas às quais não temos acesso, ou são desculpas para a colonização ou é desinformação. É telenovela.

Fronteiras imperceptíveis.

Fazer um vídeo ou um filme, escrever um texto, desenhar, pintar, esculpir ou compor uma música para mim, é muito diferente de o fazer para uma empresa. Na primeira, apenas estou limitada pelas marcas deixadas no meu pensamento. Na segunda, estou limitada, não só pelas marcas do pensamento de quem me paga, como também, e sobretudo, pelo objectivo da criação, o lucro.
Ainda que separados por uma fronteira imperceptível, os gestos, o pensamento e a criação de um realizador, ilustrador, escritor ou músico nas empresas culturais ou nos seus espaços pessoais são radicalmente diferentes.
Por isto, às vezes, fico muito concentrada a olhar para as pessoas que criam arte na rua. E tenho visto uma coisa estranha: pessoas que não têm ninguém a pagar-lhes e comportam-se como se tivessem. Tiram fotografias a pensar no lucro, escrevem a pensar no lucro, compõem a pensar no lucro. E isto surpreende-me. As pessoas agora são exploradas duas vezes. Primeiro, pelo parco valor que é dado ao seu trabalho, segundo, por si próprias, já que continuam a comportar-se como se estivessem a trabalhar, mesmo na hora da diversão.

Ideias vs ordens.

Toda a gente sabe que os conteúdos dos livros obrigatórios ou recomendados das escolas portuguesas são pensados e desenhados, em primeiro lugar, pelo Estado e, em segundo lugar, por grandes empresas editoriais. Toda a gente também sabe que o que os professores fazem não é transmitir informação mas ordenar que os alunos façam os trabalhos ou os exercícios de uma determinada forma. Quando os estudantes não fazem o exercício como os professores ordenam, têm má nota ou reprovam, tendo que repeti-lo até estarem de acordo com as suas ordens. Assim, o sistema de educação português tem uma tripla disciplinação do pensamento. Primeiro, é sempre a favor do Estado, segundo, nunca é contra as grandes empresas, terceiro, é imposto por um grupo profissional também formado com estas orientações. É por este motivo que as artes, nas suas variadas formas: plásticas, cinematográficas, literárias, musicais, etc., criadas autonomamente, são a maior fonte de emancipação do ser humano.

Questões editoriais.

Caros leitores, como já devem ter reparado, eu gosto muito de usar as seguintes palavras, expressões ou frases: "É que", "Por isso", "Sobre isto", "Eu" (que pode ser ocultado), "Pelo que", ":", "Primeiro, segundo, terceiro", "Ainda por cima", "Está bem?", "Que", "Até", "Toda a gente sabe", "Então", "E por aí fora".

É que escrevo sempre a correr. Toda a gente sabe que eu só tenho uma hora por dia para o fazer, e que acordo às 6 da manhã para isso. De outra forma, nem meia hora teria. Por isso, não tenho tempo para editar. Ainda por cima, escrevo directamente na página do blogue, no telemóvel, que não tem edição, pelo que também pode acontecer dar um ou outro erro. Então, dêm-me um desconto e centrem-se na ideia, está bem? Um dia, hei-de ter tempo para editar isto em condições. Ou deixo ficar assim, que as marcas da oralidade até que são bonitas.

Hierarquia vs transversalidade.

Se há coisa indigna neste mundo é achar que se pode falar em nome dos outros. Os médicos acham que podem falar pelos doentes, os que estudaram mais pelos que estudaram menos, os homens pelas mulheres, os professores pelos alunos, ou os empresários pelos trabalhadores. O que interessa é que cada um fale de si, ou enquanto membro do grupo a que pertence, e dos problemas políticos, financeiros, jurídicos, ou outros, que o afectam. Por isso é que eu acho muito estranho que um homem que nunca trabalhou por conta de outrem considere que pode falar por mim, que os académicos possam falar em nome do punk, que a classe média possa falar em nome dos pobres, ou alguém que nunca escreveu pelos escritores. Para que isto faça algum sentido, num hospital, por exemplo, terá que haver o grupo dos médicos, o dos enfermeiros, os trabalhadores da limpeza, financeiros, etc. e o grupo dos doentes. E não uma administração, ou o grupo mais privilegiado, a falar em nome de todos.

Funeral.

Só para dizer que hoje não morri na auto-estrada por um minuto. Foi um espectáculo de guinadelas, eu a andar de uma ponta da estrada até à outra, em ziguezagues incontroláveis. Os quilómetros, para esvaziar o depósito, marcavam 666. De um momento para o outro, o carro parou, pelo que me encontro na poltrona do lado direito da minha sala a escrever este texto comovente. Se morresse, isto deixava de ser divertido, por isso, parem lá com os bruxedos. Se, entretanto, for desta para melhor, não se esqueçam de pôr a tocar Dead Kennedys a caminho do cemitério. Pode ser que ainda oiça alguma coisa.

Eu sou terrível.

Acabo de receber esta mensagem de um amigo: "Vives desassossegada e escreves para desassossegar". Gosto muito dele mas não tem razão nenhuma. Primeiro, o meu único desassossego é não ter mais tempo para escrever. De resto, acho tudo muito divertido. Segundo, só escrevo para me divertir ainda mais. Desculpem não ter nenhum objectivo altruísta nisto.
Mas, só para não dizerem que sou má rapariga, peguem lá uma musiquinha para a tarde de domingo. 
 
Roberto Carlos, Eu sou terrível.

Liguem os telemóveis, vai começar o espectáculo.

Pronto, começou o espectáculo da compaixão. Sentem-se todos em frente à televisão, agarrem bem nos telemóveis, abram as redes sociais e comecem todos a chorar copiosamente. Mas não é só hoje, está bem? Amanhã é pelos africanos, depois de amanhã pelos sírios, no dia seguinte pelos favelados, mais um dia para os mexicanos, outro para os hawaianos, até ao fim das vossas vidas. O que não falta é motivo para peninhas. Entretanto, enquanto estão aí entretidos, alguém vai tratando da vossa terra e da vossa vida.

Atentados em Paris.

É o que dá ficar-se cego pelo poder e pelas ideias. Matam-se uns aos outros. O ocidente (aka E.U.A e companhia) tenta colonizar o médio oriente. O oriente colonizado, que também costuma matar os próprios cidadãos, entra em guerra de guerrilha com o ocidente. Deviam ter visto a vossa terra ser bombardeada do nada, a vossa mãe, os vossos filhos e os vossos amigos a morrer na guerra para "levar a democracia ao médio oriente", a ver se não vos punham na cabeça que a solução era explodir com tudo. Ontem, foram 200. Anteontem, foram milhares. Todos inocentes, nas mãos de meia dúzia. Esses, que continuam a acumular riqueza com estas guerras, é que nunca explodem.

Nem saúde, nem tempo, nem dinheiro.

"Obesidade, depressão, consumo de medicamentos e doenças crónicas como a hipertensão, as dores lombares ou as alergias. As mulheres portuguesas estão 'à frente' em quase todos os indicadores de problemas de saúde."

As mulheres portuguesas estão mais doentes do que os homens porque fazem trabalho que não é delas. Ir ao supermercado, cozinhar, lavar, passar, limpar, roupa, chão e casas de banho. A dobrar, do marido, e a triplicar ou quadruplicar, dos filhos. Mais o emprego. Esgotadas, deprimidas, ansiosas por causa da exaustão, tomam comprimidos para aguentar aquilo que nunca deveriam sujeitar-se a fazer. Isso sem contar com o facto de terem que estar bonitas e com muita vontade de fazer sexo.

Depois, não me venham atirar areia para os olhos e dizer que o machismo não existe em Portugal, que vejo tudo com o filtro da opressão, e blá blá blá. Ide comprar e fazer a vossa comida e lavar a vossa roupa.

Ensaio sobre a loucura.

A diferença entre os loucos do manicómio e os loucos que estão cá fora é uma questão de poder e dimensão. Ambos atacam traiçoeiramente aqueles que tocam nas suas ideias fixas, mas os primeiros, que estão dominados pelos segundos, ocupam menos espaço.

Moradas no além.

Quando me dizem para seguir Deus, a bondade, a liberdade, a verdade, o bem comum ou a humanidade, fico sempre confusa. Afinal, é para fazer o quê?

Capa de revista.

Se se paga a uma modelo para ser fotografada, porque não se paga à criança fotografada na guerra?

Como elevar o nível estético do 37.


Wendy O. Williams, Real Wild Child.

Bondade e maldade.

Quanto mais adulta é uma pessoa, mais dura ela é. Isso não significa que se tornou menos boa, apenas mais determinada. Venceu os medos.

A violência nasce da tentativa de colonização do outro (nas palavras de Saramago), seja pelo corpo, seja pelas emoções, seja pelas ideias. Quem é mais violento: aquele que não se deixa colonizar ou aquele que quer colonizar tudo e todos com os seus ideais? A inquisição, o holocausto, a perseguição maoísta aos intelectuais, a matança russa e a Sibéria, a matança franquista na guerra civil de Espanha, os napoleões, a colonização africana pelos europeus, a colonização americana pelos europeus, a colonização do médio oriente pelos E.U.A., e mais, tudo isto foi feito porque alguém achou que sabia mais do que os outros, que sabia o que era melhor para todos.

Eu é que sei o que é melhor para mim. Se as pessoas não gostam, isso significa que eu estou a fazer o que eu quero e não o que elas querem que eu faça.

Sobre isto, li uma vez uma frase mesmo bonita, no "Assim falava Zaratustra":

"Mas aquele que o povo odeia, com o ódio do lobo pelos cães, é o espírito livre, inimigo das algemas, aquele que não adora, aquele que habita as florestas. Persegui-lo até ao seu esconderijo é aquilo a que o povo sempre chamou ter “sentido de justiça”; e ainda por cima dão caça ao solitário com os seus ferozes mastins."

Por isso é que quando me vêm com muitos ideais e que eu sou dura e blá blá blá, só me apetece revirar os olhos. Dureza é eu ter que estar sempre a levar com imposições, e leis às quais não reconheço qualquer legitimidade. Estou eu aqui sossegada e aparece um conjunto de pessoas que quer mandar em mim. Toda a gente quer decidir o que devo vestir, como devo falar, o que devo comprar, o que devo não comprar, em que coisas devo acreditar, quais são as pessoas que merecem a minha atenção, quais as pessoas que devo desprezar,  que devo ser mais comunitária, que devo ser mais feminina, que devo ser mais sensível, e mais não sei o quê. Eu quero lá saber o que vocês acham que eu deveria ser. Alguma vez me ouviram dizer o que eu acho que vocês deveriam ser? Eu não vos tento mudar. Apenas assisto ao espectáculo.

Iluminismo, verdades e religiões.

Adoro quando alguém discorda de mim e começa a dizer que tenho que informar-me melhor sobre o assunto, e que não posso centrar-me na minha opinião particular. É o clássico “Só não pensas como eu porque não sabes nada. Se soubesses, concordavas.” Para essas pessoas, tenho uma resposta: para mim, não há verdades. Há opiniões. E a opinião que dou é sempre a minha, pelo que dizer que não devo centrar-me “na minha opinião particular” é estranho. Até porque a opinião do outro é a dele, apesar de ele achar que é uma verdade universal. E ainda é pior quando vêm com a teoria que a opinião deles é mais válida do que a minha porque “há livros que dizem isso”, “há estudos científicos que provam isso”, e mais não sei quantas formas de dizer que há qualquer autoridade que se sobrepõe à minha opinião. É que nem deus, nem a ciência, nem a experiência. O que eu digo vale tanto como o que o papa diz, que é nada. Ninguém diz verdades, todos dizem apenas a sua opinião. Eu questiono tudo. Que questionem tudo o que eu digo então.

Chupetas para adultos.

Quando somos crianças, desconhecemos tudo. Superamos o medo do novo, uma a uma coisa. Tenho medo da distância do tampo do banco até ao chão. Depois de saltar a primeira vez, percebo que a distância não é assim tão grande. Perco o medo. A última superação infantil é a do medo dos pais.
Mal superamos os nossos medos reais, arranjamos logo coisas fictícias que nos amedrontem. Agora, o que tememos é a consciência, as crenças, as ideias, as representações. Ou seja, arranjamos novos pais para temer. E construímo-los perfeitos, para não termos a possibilidade de os superar.
Sentindo-nos impotentes perante os nossos medos ficcionados, entramos no vazio.
Para sairmos dele, para voltarmos a sermos livres, temos que destruir essas ideias, essas crenças, essas representações. As maiores barbaridades que o ser humano fez teve sempre como justificação uma delas.
Isto faz-me lembrar a frase do Godard que diz "Pas une image juste, juste une image" (não uma imagem justa, só uma imagem), porque a justiça, que é uma ideia, foi inventada por alguém. E esse alguém não fui eu, pelo que não é a minha justiça mas a justiça de quem a criou. Se a justiça portuguesa tivesse sido inventada pelos pobres, só haveria ricos nas prisões. Como foi inventada pelas elites, são os pobres que lá estão.
É por isso que eu não adoro nada, especialmente ideias. Quanto menos adoramos, e quanto mais experienciamos, ou apenas apreciamos, menos ficções de perfeições temos para alcançar. E menos vazios há para preencher.

Como cumprir ordens III.

No outro dia, estacionei o carro num parque de estacionamento de uma escola, ao lado do trabalho. Tinha sempre mais de metade dos lugares vazios, pelo que tomei a liberdade de deduzir que um lugar ocupado não faria qualquer diferença. Quando já pensava que finalmente tinha encontrado um lugar de estacionamento nesta cidade, eis que surge o porteiro da escola.

- Ó menina, este parque é reservado aos docentes da escola.

-Compreendo. Mas venho aqui todos os dias e tem sempre mais de metade dos lugares desocupados. Como não há lugares lá fora, e aqui há muitos vazios, pensei que não haveria problema de estacionar.

- Mas há. Não pode estacionar aqui.

- Porquê?

- Porque são ordens que tenho.

- De quem?

- Já lhe disse. São ordens.

- O senhor é o responsável pela gestão do parque de estacionamento?

- Não. Mas não pode estacionar aí.

-Mandaram-lhe dizer-me para tirar o carro?

-Não. Eu é que a vi a estacionar e sei que não pode estacionar.

-Mas que diferença lhe faz que estacione aqui?

-Já lhe disse que são ordens.

- Olhe, tem o parque de estacionamento vazio, ninguém o mandou vir obrigar-me a tirar o carro. O senhor tem necessidade de mandar em alguém, de sentir o poder, é isso?

-Já lhe disse que são ordens.

- Olhe, os nazis também mataram os judeus porque estavam a cumprir ordens.

-Está a chamar-me nazi?

- Não, não. Foi só uma analogia. Mas, digo-lhe, tem imenso jeito para PIDE.

Como cumprir ordens.

Estava declarada a guerra aos mendigos da cidade. As instruções eram claras: os polícias deviam expulsá-los das ruas prestigiadas.

Um polícia viu, ao longe, um mendigo deitado no chão. Ordenou-lhe que saísse dali. O mendigo não reagiu. Gritou-lhe. O mendigo não reagiu. Pontapeou-o. O mendigo não reagiu.

As pessoas começaram a juntar-se à volta dos dois.

O polícia, aflito, pensou: “Não pode estar morto. Posso fazer tudo menos matá-lo. É o meu fim.”

Já em desespero, levantou o cobertor do mendigo para ver se estava vivo.

Era um mendigo de plástico, colocado por uma célula de mendigos desobedientes.

Nunca mais a cidade parou de rir do polícia.

(Sobre o primeiro capítulo d´A violência e o escárnio, de Albert Cossery)

Como cumprir ordens I.

Deus tem Caspa, de Júlio Henriques.

Pessoas especiais.

A expressão desorientada que algumas pessoas fazem quando as tratamos da mesma forma que as outras é surpreendente. “Então, andei eu a tirar 1973 cursos, mestrados e doutoramentos, a vender a alma a troco de poder, tenho mais dinheiro para gastar numa refeição do que o que tu ganhas num mês inteiro, e tu falas comigo como se eu fosse uma pessoa normal?".

PIDE humanitária ou Também é assim que se faz para o resto.

Sobre isto:


Controlar o que as pessoas dizem, independentemente do conteúdo, nunca ajudou à resolução de nenhum problema social. Silenciar é impossibilitar o confronto e é só nele, na antinomia, que se descobrem novas formas de pensar. Tu dizes o que pensas, eu argumento contra, criamos uma nova perspectiva, que incorpora as duas. O que este aplicativo faz é calar os racistas, sexistas, e outros istas, o que só fará com que eles criem formas mais sofisticadas e perigosas de exorcizar os seus preconceitos. Tapas a panela, a água ferve mais. Além do facto de isto ser uma desculpa para controlar o que todos dizem, e não apenas aquilo que é considerado, por alguns, como ofensivo. As elites financeiras terão aplicações para silenciar os que são contra elas, as elites religiosas terão aplicativos para silenciar os hereges, as elites estatais terão aplicativos para silenciar quem diz mal do governo, e por aí fora. O problema é que o cidadão comum, que, por acaso, constitui a maioria da população, é o único que não tem possibilidade de criar aplicações que silenciem as empresas, o governo, a igreja e quaisquer outras instituições que pretendam decidir sobre o que têm a dizer.

Criar ou desligar interruptores.

Se o controlo é hoje exercido através da internet, a resistência ao poder será feita pelos hackers ou, por qualquer pessoa, no momento em que se desliga.

Os defensores do Estado deverão garantir a existência de espaços onde os cidadãos possam não-comunicar ou recusar-se a fazê-lo.

Os que acreditam que o Estado é uma forma de legitimação do exercício de poder de uma minoria sobre a maioria, aprenderão a piratear as suas estruturas virtuais. A criar vírus que apaguem os dados dos cidadãos das bases de dados das empresas, por exemplo.

Os desobedientes desligar-se-ão.

Tirem-me deste aquário.

Como escrevi aqui, um dos maiores problemas das redes sociais é privatizarem os tempos livres. Isto tem como consequência a impossibilidade de criação de espaços e discursos próprios, longe das empresas que as criam e as gerem. É que, não nos esqueçamos, apesar de não os vermos, os gestores do Google e do Facebook verificam diariamente como nos comportamos e criam mecanismos virtuais para nos induzirem aos comportamentos que mais lhe interessam, e os mais lucrativos para as empresas que investem neles, que compram os nossos dados ou espaços publicitários. Ou seja, sempre que estamos ligados a um smartphone, a um tablet ou a um computador, o nosso comportamento está a ser manipulado por empresas. E esta mediação tem características e consequências que subvertem por completo a consciência pública. O facto dos motores de busca e das redes sociais serem personalizados (eles escolhem o que vemos e fazem-no com base no que procuramos e gostamos no passado), implica que estejamos a passear num espaço do consenso, onde nunca temos a necessidade de contactar com o diferente, com a alteridade. Só nos mostram o que queremos ver, o que é igual a nós. É por este motivo que pensar que as redes sociais são uma forma de incremento à liberdade de expressão é o mesmo que se dizer que quanto mais o cão ladra mais liberdade ele está a exprimir. Todos falam muito, ninguém se ouve. E quando alguém diz alguma coisa que não interessa, ou é ameaçadora para estas empresas, elas tratam de as silenciar, utilizando algoritmos que, por exemplo, fazem com que publicações com determinadas palavras circulem ou apareçam menos. Ou, no Google, nem sequer aparecendo. Procuras isto, mas sou eu que escolho o que aparece e, consequentemente, onde vais clicar. Por isso é que isto tudo me parece um aquário. As paredes de vidro, que são transparentes, não se vêm. Ou seja, a limitação, feita pela mediação, está lá, mas nós continuamos a nadar, ignorando a sua existência e limitando por completo os nossos horizontes. Haja mar.

Diz-me o que adoras, dir-te-ei quem és.

A única vantagem do pensamento é podermos escolher conscientemente o que adorar. Se tivermos aprendido a pensar, então saberemos que há sempre outras opções. Por isso é que é importante prestarmos atenção para decidir. Porque, isto é a consequência, se adorarmos, inconscientemente, a beleza, o sexo, o dinheiro, o estatuto, o poder, uma pessoa ou o intelecto, é isso que nos vai matar.

Maquilhagem e ironia.

-Ficavas mais bonita ao natural, disse ele.

-Devias desenhar em papiros.

-A maquilhagem não devia existir porque ela é um instrumento do engano, que serve para camuflar os defeitos naturais.

-A arquitectura não devia existir porque ela é um instrumento do engano, que serve para camuflar os defeitos naturais. Não há uma única linha recta na natureza. Não é uma imitação ou camuflagem do real. Ficciona-o. Transcende-o.

Vive la fête, Maquillage.

Pendura-me na parede de um museu.

O problema de toda a gente andar obcecada com o melhoramento do corpo é o mesmo de toda a gente andar afogada em enormes quantidades de imagens publicitárias, facebookianas e instagramicas. A coação da hipervisibilidade reside no facto de só o valor de exposição contar. Não há nada para além do corpo. Não há narrativa.

Corpos há muitos.

"O erotismo, no seu conjunto, é infracção às regras das proibições: é uma actividade humana. Mas, embora comece onde o animal acaba, a animalidade é sempre o seu fundamento. Desse fundamento, a humanidade desvia-se com horror (...).

Sempre associada ao erotismo, a sexualidade física está para o erotismo como o cérebro está para o pensamento." Georges Bataille, in O Erotismo.

Ou,

Ainda que o impulso erótico nasça da nossa animalidade, o que nos embriaga não é o corpo. É o pensamento. E é precisamente dele que se alimenta o erotismo.